Evangelho DominicalVersículos Bíblicos
 
 
 
 
 

16. Um Reino sem Impuros (Mc 5,1-20)

Ler do Início
12.01.2014 | 7 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
16. Um Reino sem Impuros (Mc 5,1-20)

5


1 Jesus e os discípulos chegaram à outra margem do lago, na região dos gerasenos.
2 Logo que Jesus desceu do barco, um homem que tinha um espírito impuro saiu do meio dos túmulos e foi a seu encontro.
3 Ele morava nos túmulos, e ninguém conseguia amarrá-lo, nem mesmo com correntes.
4 Muitas vezes tinha sido preso com grilhões e com correntes, mas ele arrebentava as correntes e quebrava os grilhões, e ninguém conseguia dominá-lo.
5 Dia e noite andava entre os túmulos e pelos morros, gritando e ferindo-se com pedras.
6 Ao ver Jesus, de longe, o homem correu, caiu de joelhos diante dele
7 e gritou bem alto: “Que queres de mim, Jesus, Filho de Deus Altíssimo? Por Deus, não me atormentes!”
8 Jesus, porém, disse-lhe: “Espírito impuro, sai deste homem!”
9 E perguntou-lhe: “Qual é o teu nome?” Ele respondeu: “Legião é meu nome, pois somos muitos”.
10 E suplicava-lhe para que não o expulsasse daquela região.
11 Entretanto estava pastando, no morro, uma grande manada de porcos.
12 Os espíritos impuros suplicaram então: “Manda-nos entrar nos porcos”.
13 Jesus permitiu. Eles saíram do homem e entraram nos porcos. E os porcos, uns dois mil, se precipitaram pelo despenhadeiro no lago e foram se afogando.
14 Os que cuidavam deles fugiram e espalharam a notícia na cidade e no campo. As pessoas saíram para ver o que tinha acontecido.
15 Chegaram onde estava Jesus e viram o possesso sentado, vestido e no seu perfeito juízo – aquele que tivera o Legião. E ficaram com medo.
16 Os que tinham presenciado o fato explicavam-lhes o que havia acontecido com o possesso e com os porcos.
17 Então, suplicaram Jesus para que fosse embora do território deles.
18 Enquanto Jesus entrava no barco, o homem que tinha sido possesso pediu para que o deixasse ir com ele.
19 Jesus, porém, não permitiu, mas disse-lhe: “Vai para casa, para junto dos teus, e anuncia-lhes tudo o que o Senhor, em sua misericórdia, fez por ti”.
20 O homem foi embora e começou a anunciar, na Decápole, tudo quanto Jesus tinha feito por ele. E todos ficavam admirados.



Depois de outra travessia, Jesus e os discípulos chegam a Gerasa (v. 1), terra estrangeira, povoada por gentios. A “outra margem”, nesse texto, não é só física, mas cultural, étnica e religiosa. Para o povo da Aliança, os gerasenos são, de fato, “marginais”.


E eis que, em terra tão marginal, vem ao encontro de Jesus um “espírito impuro” (v. 2). Já vimos que esses “espíritos” são tudo quanto se oponha à boa notícia do Reino, anunciada por Jesus. Poderíamos chamá-lo de um “espírito de morte”, pois vivia no meio dos túmulos. Um “espírito” indomável (v. 3-4), algo que se assemelharia àquilo que hoje chamaríamos surto psicótico. Um “espírito” de tal modo destruidor que, principiando pelo corpo do jovem, destruía tudo quanto se punha em seu caminho (v. 5). E não são assim os “espíritos de morte”? Certamente, já encontramos pessoas “possuídas” por tais espíritos, que começam por destruir a si próprias e espalham destruição em tudo o que tocam. Pessoas que perderam a esperança e se arrastam pelo desespero; de quem foi roubada a liberdade e se debatem entre grilhões; que praticamente já morreram e, à espera da morte definitiva, vivem entre túmulos e agouram morte por onde passam. Talvez, seja um “espírito” bastante comum. E é evidente o quanto se opõe à boa notícia de Jesus: no Reino, realizamos nossa vocação à liberdade, à esperança, à vida. Um “espírito de morte” só pode ser um “espírito impuro”, um “demônio”.


Como de costume em Mc, os “espíritos impuros” reconhecem logo Jesus e lhe creditam os títulos marcanos (Cristo, Filho de Deus), rompendo o segredo messiânico. Com este, não foi diferente: ele corre e se prostra diante de Jesus, aos gritos, pedindo que se afaste dele (v. 6-7). É curioso que Jesus, após ordenar que saia (v. 8), principie um diálogo com o jovem e lhe pergunte o nome do “espírito impuro” (v. 9). “Legião, porque somos muitos”. “Legião”: exatamente o que Roma significa para os judeus e os gerasenos, isso mesmo os “espíritos impuros” significam para o Reino de Deus – uma possessão ilegítima, que espolia injustamente as melhores forças e os mais fartos recursos. A dominação romana imobilizara os anseios de liberdade, já há muitos anos; “Legião” imobilizara o jovem, fazendo-o jazer entre os túmulos de Gerasa, morto em vida.


Porém, é bastante interessante a antiga crença de que os demônios têm nome e pronunciar-lhes o nome já é o começo de sua expulsão. De fato, constatar e explicitar os mecanismos de morte implícitos na alma das pessoas ou na gerência dos sistemas é já o começo de sua superação. Muitos são os que se libertam de antigos fantasmas quando conseguem, finalmente, dar nome ao mal que lhes aflige. E muitos são os que, tomando consciência dos mecanismos sociais que lhes controlam, adquirem nova consciência, mais ampla e livre, tornando-se mais donos de si mesmos e responsáveis pelo mundo.


De volta ao texto, “Legião” pede que Jesus não o expulse “daquela região” de Gerasa (v. 10). Afinal, “espíritos impuros” devem ficar em lugares impuros, povoados por gente impura – tudo dentro da mais correta lógica judaica. Porém, se para o Reino de Deus não há pessoas impuras, os “espíritos impuros” devem ser expulsos. Então, poderiam se alojar nos porcos, animais impuros, que pastavam no monte? Jesus consente, mas nem os porcos são lugar para “Legião”; logo que possuídos, atiram-se ao mar (v. 11-12). No Reino anunciado por Jesus, não há nada de impuro que possa coadunar com os “espíritos impuros”: nem pessoas, nem lugares, nem animais.


Naturalmente, a notícia correu “pela cidade e pelo campo” (v. 14). E os gerasenos encontraram o jovem “vestido, em perfeito juízo” (v. 15), assentado aos pés de Jesus – esta é a postura do discípulo: assentado aos pés do mestre. E, pela primeira vez em Mc, as pessoas pedem a Jesus que vá embora (v. 16-17). Coisa bastante inusitada, o pedido dos gerasenos faz pensar que o reino de Deus, quando implantado, pode trazer prejuízo a alguns – os dois mil porcos no precipício – pois, para Jesus, a vida é mais importante que o mercado financeiro: em primeiro lugar o jovem, depois a economia local. Mas nem todos entendem isso...


O pedido do jovem que vem logo a seguir é previsível: o antigamente possesso e agora tornado discípulo quer ir com Jesus, seguir o mestre (v. 18). Mas é inusitada a resposta que recebe: não, ele deve ficar e anunciar entre os seus “as maravilhas que Deus lhe realizou” (v. 19). É a primeira vez em Mc que Jesus dispensará um discípulo que quer segui-lo. Mas o dispensa para fazê-lo anunciador. Tanto que, logo, o jovem anuncia, não só em Gerasa, mas em toda a Decápole, o que Jesus tinha feito por ele (v. 20).


Por fim, é necessário que todos fiquem “admirados” para que a admiração lhes desperte a pergunta fundamental sobre “quem é Jesus”, afinal tirar uma legião de impurezas de alguém e lhe devolver o juízo não é coisa para qualquer um. Só quem traz o Reino em si faz o Reino acontecer também para os outros.


 * * *


No Reino anunciado por Jesus, não há impuros – e por isso é tão boa notícia. Assim, não há lugar para “espíritos impuros” ou “espíritos de morte”, pois todos são chamados à vida plena. E não importa quão “possuído” se esteja, pois basta o coração aberto e a busca sincera para, encontrando Jesus, tornar-se seu discípulo e anunciador das maravilhas que ele faz em nós.