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15. As Sementes e a Barca (Mc 4,26-41)

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05.01.2014 | 9 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
15. As Sementes e a Barca (Mc 4,26-41)

4


26 Jesus dizia-lhes: “O Reino de Deus é como quando alguém lança a semente na terra.
27 Quer ele esteja dormindo ou acordado, de dia ou de noite, a semente germina e cresce, sem que ele saiba como.
28 A terra produz o fruto por si mesma: primeiro aparecem as folhas, depois a espiga e, finalmente, os grãos que enchem a espiga.  29 Ora, logo que o fruto está maduro, mete-se a foice, pois o tempo da colheita chegou”.
30 Jesus dizia-lhes: “Com que ainda podemos comparar o Reino de Deus? Com que parábola podemos apresentá-lo?
31 É como um grão de mostarda que, ao ser semeado na terra, é a menor de todas as sementes.
32 Mas, depois de semeada, cresce e se torna maior que todas as outras hortaliças, com ramos grandes a tal ponto que os pássaros do céu podem fazer seus ninhos em sua sombra”.
33 Jesus lhes anunciava a palavra usando muitas parábolas como estas, de acordo com o que podiam compreender.
34 Nada lhes falava sem usar parábolas. Mas, quando estava a sós com os discípulos, lhes explicava tudo.
35 Naquele dia, ao cair da tarde, Jesus disse aos discípulos: “Passemos para a outra margem!”
36 Eles despediram a multidão e levaram Jesus, do jeito como estava, consigo no barco; e outros barcos o acompanhavam.
37 Veio, então, uma ventania tão forte que as ondas se jogavam dentro do barco; e este se enchia de água.
38 Jesus estava na parte de trás, dormindo sobre um travesseiro. Os discípulos o acordaram e disseram-lhe: “Mestre, não te importa que estejamos perecendo?”
39 Ele se levantou e repreendeu o vento e o mar: “Silêncio! Cala-te!” O vento parou, e fez-se uma grande calmaria.
40 Jesus disse-lhes então:“ Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”
41 Eles sentiram grande temor e comentavam uns com os outros: “Quem é este, a quem obedecem até o vento e o mar?”

As sementes do Reino


 Como no começo do capítulo 4 (cf. Estudo 14), Jesus continua a descrever o Reino através de parábolas. Agora, como “alguém que lança semente na terra” (v. 26). Ainda que o semeador seja “protagonista” da semeadura, não está nele o misterioso poder que faz germinar a semente (v. 27). Ainda que o anuncie, o discípulo deve saber que o Reino é dom e é por própria força que germina sobre a terra. Graças à qualidade dessa boa semente (o Reino) e à fertilidade inerente à terra na qual é semeada (o mundo), o anunciador-semeador pode dormir tranqüilo. Sabe que, após fazer tudo, com todo o esforço como se dependesse somente de si mesmo, o Reino cresce, amadurece e se oferece a nós por puro mistério do Espírito de Cristo (v. 28). O semeador lança a semente e aguarda a maturidade – que é agora! – para deitar-lhe a foice da colheita (v. 29). Uma maturidade definitiva ainda virá, escatológica, e por isso ainda vai se cumprir. Mas já é também dom para agora, que alimenta os que se põem, desde já, a caminho da eternidade.


 Como se fosse um único discurso, Mc apresenta Jesus à procura de novas parábolas para representar o Reino (v. 30). A imagem é novamente agrícola: uma semente de mostarda, a menor de todas as sementes (v. 31), mas que se torna a maior de todas as hortaliças, em cuja sombra os seres humanos e os animais se abrigam (v. 32). Inquietante essa parábola, pois, nas Escrituras, Israel já havia sido comparado a muitas árvores, preciosas por seus frutos, como a figueira (1Rs 4,25; Mq 4,4; Zc 3,10), a videira (Sl 80; Is 5) ou a oliveira (1Rs 10,2). Ou ainda ao “cedro plantado no alto do monte”, por sua força e majestade (Ez 17,23). Em Dn, o grande Nabucodonosor, rei da Babilônia, é comparado a uma grande árvore, cuja sombra cobria toda a terra (Dn 4). Mas nem toda sua força e exuberância impediria, segundo a interpretação de Daniel, que fosse cortada e lançada ao fogo. E, no meio de tantas parábolas em que a árvores significam força, solidez e longevidade, a comparação do Reino a uma semente de hortaliça se revela, ao menos, inusitada. Uma hortaliça grande, deveras, nascida da menor de todas as sementes e em cuja sombra os pássaros se abrigam. Mas a “árvore” nascida dessa semente do Reino, a Igreja, não deixa de ser uma hortaliça, bem diferente da glória majestosa do cedro. Assim, pois, é a Igreja: grande e acolhedora, sem abandonar sua provisoriedade e sua função primária de alimentar aqueles que nela se abrigam, deixando que, a partir de seus ramos, o vento leve e espalhe novas sementes do Reino, que germinarão prodigamente por toda parte.


 E Mc faz questão de reiterar: Jesus conta as parábolas “de acordo com o que podiam compreender” (v. 33). Não as conta “para que a multidão não compreenda” (cf. Estudo 14). A finalidade das parábolas é a compreensão, embora aqueles que estejam “fora” tenham grande dificuldade de entendimento da novidade do Reino. Aos discípulos, porém, “ao de dentro”, explicava todas as coisas, compreensíveis à luz do seguimento e do convívio com Jesus (cf. Mc 3,13). Aos de fora, fica o convite para se tornarem “com Jesus”, da sua intimidade: só assim entenderão as parábolas, pois o bom mestre os esclarecerá.


 A Barca do Ressuscitado


 Se a mostarda, nascida da pequenina semente do Reino, já oferecia uma bela imagem do que Mc compreende ser a Igreja – a comunidade dos discípulos unidos sob a fé no Ressuscitado –, uma imagem ainda mais explícita vem a seguir (v. 35-41).


 Nesta perícope, apelidada de “a tempestade acalmada”, o próprio Jesus convida a “passar à outra margem” (v. 35). Nos Evangelhos, essas “passagens” por algum obstáculo (um rio, um lago, uma margem, um monte) quase sempre remetem à “passagem do Senhor”, à sua páscoa. Ou melhor, a uma passagem de consciência dos discípulos, que descobrirão surpresos a presença do Ressuscitado. Perceba-se que a “passagem à outra margem” se dará “ao cair da tarde”, quando o sol já declina e as trevas se aproximam. Pois é assim a vida de fé, cheia de ocasos, de crepúsculos, de penumbras incertas; momentos nos quais se caminha “às apalpadelas”, tateando o caminho. Tal como na Páscoa de Jesus, em que a ressurreição brota do fundo mesmo da morte, também na vida da comunidade a presença do Senhor, não raro, se mostra nas turbulências e nas dificuldades. Além disso, “ao cair da tarde” pode indicar também o processo de maturidade, diferente dos passos titubeantes da manhã; a caminhada daqueles que já fizeram do seguimento de Jesus o caminho de sua vida e muito já aprenderam desse caminho.


 No mar da vida e de suas incertezas, está lançado o barco da comunidade cristã (v. 36). E Jesus nele. Há outros barcos, que o acompanham. O Novo Testamento não tem nenhum pudor de se referir à “Igreja” no plural – as Igrejas; as barcas; as comunidades. De fato, a unidade da Igreja se fortalece na afirmação de cada uma de suas singularidades; e a multiplicidade é condição indispensável da unidade. Pois a Tradição não compreende “unidade” por “unicidade” ou “exclusividade”. A unidade pressupõe a diversidade e a plenifica. Por isso, é a primeira das notas constitutivas da Igreja: una, santa, católica e apostólica.


 Mal começa a travessia e o vento se torna violento, atirando as ondas dentro do barco (v. 37). Não obstante, “Jesus dorme” (v. 38). Já vimos que “dormir” e “morrer”, tal como “despertar” e “ressuscitar”, são verbos análogos. Para a comunidade que sofre e ameaça perecer, Jesus parece morto, ausente; aparenta ter abandonado os seus, justamente no momento de maior necessidade. A comunidade não o sente, não o percebe. Teria ele, de fato, ressuscitado? E de que nos vale essa sua presença impotente?


 Os discípulos despertam Jesus (v. 38). Ou será que não foram eles que despertaram? Jesus desperta, mostra-se ressuscitado àqueles que, mediante a fé pascal, fazem dele seu Mestre. Mas a ressurreição é, simultaneamente, uma experiência de Jesus e de seus discípulos. Então, também eles despertam; fazem eles próprios a experiência pascal e redescobrem seu Mestre, presente desde sempre, junto a eles, nas ventanias da vida. À presença do Ressuscitado, o vento cessa e o mar se acalma (v. 39). E Jesus repreende os discípulos pela falta de fé (v. 40). Diria: “Não creem que estou, de fato, com vocês, ainda que escura seja a noite e bravio o mar? Não creem que, nas errâncias incertas da barca da comunidade, eu estou presente? Não creem que as ameaças cotidianas, eu as sofro com vocês?”.


 Como sempre em Mc, os discípulos se maravilham com seu Senhor (v. 41). E essa admiração faz nascer a pergunta fundamental, que muda tudo, à qual o Evangelho busca constantemente responder: quem é esse, a quem até o mar e o vento obedecem? Quem é, afinal, Jesus?


 * * *


O discípulo bem sabe o dom que anuncia: o Reino de Deus, oferecido gratuita e indistintamente. Qual semente que misteriosamente germina, assim o Reino: semeamos e cultivamos como se dependesse só de nós, mas nos tranquilizamos porque esperamos depender só de Deus. Essa semente faz nascer a maior de todas as plantas, mas que nem por isso se esquece de sua fragilidade e fugacidade. A Igreja, mostarda viçosa, é também a barca do Ressuscitado, na qual Ele acompanha os seus, nas noites escuras e nas tempestades bravias. Grandes as ondas. Maior a fé.