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134. Reflexão para o 32º domingo do Tempo Comum - Lc 20,27-38 (Ano C)

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10.11.2019 | 8 minutos de leitura
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues
Evangelho Dominical
134. Reflexão para o 32º domingo do Tempo Comum - Lc 20,27-38 (Ano C)

Neste trigésimo segundo domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura do Evangelho segundo Lucas, após a interrupção do domingo passado, devido à solenidade de todos os santos. Por sinal, por ocasião daquela solenidade, fomos privados de celebrar o trigésimo primeiro domingo, cujo evangelho era Lc 19,1-10, um dos principais textos de todo o Evangelho segundo Lucas, pois corresponde ao episódio do encontro de Jesus com o publicano Zaqueu, o ponto culminante do longo caminho para Jerusalém. Acompanhamos praticamente todo o caminho, mas perdemos a sua conclusão, infelizmente. O texto proposto para hoje – Lc 20,27-38 – apresenta Jesus já na cidade de Jerusalém, provavelmente nas dependências do templo, em um debate polêmico com os saduceus acerca da ressurreição dos mortos.


O ministério de Jesus em Jerusalém foi curto e polêmico. Sua primeira atitude ao entrar na cidade foi desmascarar o templo como casa de comércio, expulsando de lá os vendedores (cf. Lc 19,45-46). Depois disso, passou a ensinar no templo todos os dias (cf. Lc 19,47), colocando cada vez mais a sua mensagem em confronto com a doutrina oficial e, consequentemente, tornando a sua morte cada vez mais próxima e real. Durante o ministério na Galileia e no caminho, os principais adversários de Jesus tinham sido os fariseus. Em Jerusalém, os fariseus praticamente saem de cena, o que prova que eles não estavam diretamente ligados ao poder político e nem religioso, mas compunham um movimento mais popular, embora rígido no que se refere à doutrina e à observância da Lei. Os grupos que se opõe a Jesus em Jerusalém são os sacerdotes, os escribas, anciãos e os saduceus – todos componentes do sinédrio – responsáveis diretos pelo poder religioso e coniventes com a dominação romana.


O trecho lido hoje relata uma polêmica com os saduceus acerca da ressurreição. É um episódio relatado nos três evangelhos sinóticos (cf. Mt 22,23-33; Mc 12,18-27; Lc 20,27-38), sendo que é a única vez em que os saduceus aparecem no Evangelho de Lucas. De todos os grupos, partidos ou movimentos existentes na época, os saduceus eram o grupo mais conservador; era também o grupo mais rico, formado pela aristocracia de Jerusalém. Era desse grupo que saíam os sumos sacerdotes; o próprio nome deriva de Sadoc, um importante sacerdote dos tempos de Davi; inclusive, foi Sadoc quem ungiu Salomão como rei (cf. 1Rs 1,38-40). Por isso, era um grupo concentrado em torno do poder religioso e político; aceitavam passivamente a dominação romana em troca de privilégios e detinham o maior número de assentos no sinédrio, o máximo órgão jurídico de Israel. Os evangelhos os mencionam pouco porque eles atuavam somente na cidade de Jerusalém, e a maior parte do ministério de Jesus foi desenvolvido no interior, sobretudo na Galileia, onde havia mais influência dos fariseus.


Uma vez contextualizados, olhemos para o texto: “Aproximaram-se de Jesus alguns saduceus, que negam a ressurreição” (v. 27). No que diz respeito à doutrina, uma das principais características dos saduceus era a negação explícita da ressurreição. Não tratamos disso na contextualização, uma vez que é o próprio texto quem fornece a informação. Inclusive, os saduceus consideravam como palavra de Deus somente a Torá, ou seja, o Pentateuco, e achavam nos cinco primeiros livros não havia nenhuma fundamentação para a fé na ressurreição. Rejeitavam os profetas, porque o ensinamento profético era composto de sérias denúncias à casta sacerdotal e a todos os agentes de exploração, como eles, os saduceus. Respeitavam o restante do Antigo Testamento, mas não o tinham como ponto de referência para a fé.


Os saduceus fazem um questionamento a Jesus sobre a ressurreição, com o intuito de colocá-lo em dificuldade ou contradição. Imaginavam que, diante do caso apresentado, Jesus não encontraria saída. Eis o problema: “E lhe perguntaram: “Mestre, Moisés deixou-nos escrito: se alguém tiver um irmão casado e este morrer sem filhos, deve casar-se com a viúva, a fim de garantir a descendência para o seu irmão” (v. 28). Antes de tudo, eles usam um aspecto importante da Torá, ensinamento considerado inquestionável para eles e para todo o judaísmo. Aqui, eles se referem à chamada “lei do levirato”, termo latino que deriva de “levir”, cujo significado é cunhado. De acordo com essa lei, quando um homem casado morria sem deixar filhos, um irmão do falecido, ou seja, um cunhado, deveria casar-se com a viúva para garantir a descendência (cf. Dt 25,5-10).


A questão em si é bastante simples, pois era muito acontecer casos assim. Só se torna inusitada com a história contada para embaraçar Jesus, em seguida: “Ora, havia sete irmãos. O primeiro casou e morreu, sem deixar filhos. Também o segundo e o terceiro se casaram com a viúva. E assim os sete: todos morreram sem deixar filhos. Por fim, morreu também a mulher” (29-32). Aqui, de fato, a história se torna atípica, devido ao exagero; por trás de tudo, há também uma ridicularização da mulher; como era considerada um objeto de posse, a história contada pelos saduceus a apresenta como uma mercadoria que passou por diversos proprietários.


Da história contada, os adversários de Jesus propõem o verdadeiro problema, esperando dele uma resposta contraditória e, assim, teriam mais um motivo para incriminá-lo: “Na ressurreição, ela será esposa de quem? Todos os sete estiveram casados com ela” (v. 33). Além de não acreditarem na ressurreição, os saduceus tinham também uma visão equivocada dessa. Ora, eles partem da ideia tradicional, pregada inclusive pelos fariseus, e da qual Jesus discorda, que concebia a ressurreição como uma mera recomposição aperfeiçoada da vida presente, fruto de uma interpretação equivocada da visão alegórica dos ossos ressequidos no livro do profeta Ezequiel (cf. Ez 37) e de outros textos. Se trata de uma concepção materialista da vida futura. Essa era a ideia difundida na época.


Na resposta, Jesus revela o seu distanciamento da concepção popular de ressurreição, ensinando que a vida futura não será uma continuação desta vida, nem sequer será semelhante, mas será uma nova vida, cujo parâmetro não é a vida presente, mas tudo será novo, uma vez que a ressurreição é a oferta que Deus faz da sua própria vida, da sua eternidade, e isso não está ao alcance das abstrações humanas. Eis a resposta de Jesus: “Jesus respondeu aos saduceus: “Nesta vida, os homens e as mulheres casam-se, mas os que forem julgados dignos da ressurreição dos mortos e de participar da vida futura, nem eles se casam nem elas se dão em casamento; já não poderão morrer, pois serão iguais aos anjos, serão filhos de Deus, porque ressuscitaram” (vv. 34-36). Antes de tudo, Jesus desconcerta os saduceus: mesmo sem acreditar, eles foram mal formados acerca da ressurreição. Ao dizer que na vida futura “os homens e as mulheres não se casam e nem se dão em casamento”, ele afirma que nenhuma relação ou realidade desta vida pode ser comparada à ressurreição. Os anjos, em quem os saduceus também não acreditavam, eram os seres mais próximos de Deus, conforme a fé tradicional do judaísmo; dizendo que os seres humanos serão iguais aos anjos, ele afirma que serão muito próximos a Deus, com a ressurreição. Com a ressurreição, portanto, não será uma melhoria desta vida, mas uma transformação radical.


O ápice da resposta de Jesus, no entanto, é a citação da Lei, ou seja, a referência a Moisés: “Que os mortos ressuscitam, Moisés também o indicou na passagem da sarça, quando chama o Senhor de ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’. Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para ele” (vv. 37-38). Ora, os saduceus gabavam-se de que na única parte da Escritura válida para eles, o Pentateuco, não havia qualquer fundamento para uma fé na ressurreição, e Jesus mostra que eles estavam equivocados e compreendiam mal a Escritura. De uma leitura atenta do Pentateuco é possível encontrar razões para a ressurreição. Por isso, Jesus recorda o diálogo de Deus com Moisés, no episódio da sarça ardente (cf. Ex 3,1-6), no qual Deus se apresentou como o Deus dos patriarcas, mas não simplesmente como o Deus em quem os patriarcas acreditaram, mas o Deus que estava em comunhão com eles. E o que Deus prometera e concebera aos patriarcas é válido para todas as gerações dos que o temem (cf. Lc 1,50.72-75).


A interpretação limitada da Escritura pelos saduceus, desmascarada por Jesus, alimentava um sistema de dominação e alienação que mantinha os privilégios de uma classe e de todo um sistema. Além de abrir perspectivas e alimentar esperanças, sobretudo a esperança de um mundo novo, Jesus também desmascara o uso reduzido e fundamentalista da Escritura por grupos hegemônicos. Ao deixar claro que a vida futura não será um aperfeiçoamento desta vida, Jesus também nos estimula a melhorar a vida presente em sua realidade mais concreta. Por isso, podemos dizer que o centro do evangelho de hoje não é uma definição doutrinal da ressurreição, mas um convite à esperança para a transformação desta vida, já que da outra é Deus mesmo quem se encarrega.