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7. O Profeta, o Espírito, o Deserto (Mc 1,1-13)

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11.11.2013 | 9 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
7. O Profeta, o Espírito, o Deserto (Mc 1,1-13)

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1 Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.
2 Está escrito no profeta Isaías: “Eis que envio à tua frente o meu mensageiro, e ele preparará teu caminho.
3 Voz de quem clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as veredas para ele”.
4 Assim veio João, batizando no deserto e pregando um batismo de conversão, para o perdão dos pecados
5 A Judéia inteira e todos os habitantes de Jerusalém saíam ao seu encontro, e eram batizados no rio Jordão, confessando os seus pecados.
6 João se vestia de pelos de camelo, usava um cinto de couro à cintura e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre.
7 Ele proclamava: “Depois de mim vem aquele que é mais forte do que eu. Eu nem sou digno de, abaixando-me, desatar a correia de suas sandálias.
8 Eu vos batizei com água. Ele vos batizará com o Espírito Santo”.
9 Naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João, no rio Jordão.
10 Logo que saiu da água, viu o céu rasgar-se e o Espírito, como pomba, descer sobre ele.
11 E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho amado; em ti está o meu agrado”.
12 Logo depois, o Espírito o fez sair para o deserto.
13 Lá, durante quarenta dias, foi posto à prova por Satanás. E ele convivia com as feras, e os anjos o serviam.

A Profecia recumprida em João


Uma vez afirmada sumariamente a finalidade e a tese fundamental do Evangelho (Jesus é o Cristo, o Filho de Deus – v. 1), Marcos evoca o profeta Isaías, embora a citação que segue justaponha um versículo de Malaquias e outro de Isaías (v. 2-3): “Eis que envio à tua frente o meu mensageiro, e ele preparará teu caminho (Ml 3,1). Voz de quem clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as veredas para ele”(Is 40, 3).


O capítulo 40 de Isaías se refere a um “novo Êxodo” (cf. Is 40,1-11). De volta do exílio da Babilônia, o profeta convida o povo a reconhecer a oportunidade de, a partir dos escombros e da imensa tarefa da reconstrução do país, das instituições, mas, sobretudo da identidade, novamente se achegar ao Senhor, refazendo no deserto a experiência de seus antepassados e renovar a Aliança. O profeta, aliás, é sempre alguém que zela pela Aliança, denunciando seu descumprimento e convidando à renovação. Malaquias, por sua vez, fala do “enviado do Senhor”, seu “precursor”, aquele que vem diante de Deus e prepara sua vinda (cf. Ml 3,1ss), quando, finalmente, o Senhor virá e efetivará sua presença permanente com seu povo. Antes, virá Elias, o profeta por excelência. Tanto que a organização temática da Bíblia colocou Malaquias no fim do Antigo Testamento, sugerindo relacioná-lo com os Evangelhos.


Assim, a intenção de Mc aparece: João Batista realiza simultaneamente essas duas profecias. No dizer de Malaquias, João traz o “espírito de Elias”, o precursor que prepara o caminho do Messias, Filho de Deus. É o último anúncio da Aliança de nossos pais que, a partir de Cristo, chega como convite a todo ser humano. Nas palavras de Isaías, João é aquele que se põe a reunir novamente o “Povo de Deus”, qual novo Israel. Assim como, nos tempo de outrora, o povo atravessou o rio Jordão para adentrar a terra de Canaã, agora de novo o povo se reúne no Jordão, para reviver a experiência de seus pais e reconstruir a própria vida, em fidelidade à Aliança. Ao mesmo tempo, João é o fim desse caminho pelo deserto, porque, depois dele, virá “Aquele de cujas sandálias nem é digno de desatar as correias” (v. 7). É um homem do deserto, anunciador austero da justiça de Deus, qual Elias (cf. v. 6).


E qual a condição para integrar o Povo de Deus querido por João? A “confissão dos pecados” (v. 5). Para os antigos, a relação entre pecado e sofrimento era elementar: o reino se dividiu pelo pecado de seus súditos e de seus reis; por causa do pecado e da infidelidade, o Norte foi tomado pelos assírios e, mais tarde, o Sul foi exilado pela Babilônica. Ainda por causa de seus pecados, o povo foi novamente dominado pelos gregos e, agora, pelos romanos. Condição para a libertação é, pois, o arrependimento, a confissão dos pecados e o propósito de uma vida nova. Só então é lícito atravessar de novo o Jordão. O “batismo” (que literalmente significa “imersão em água”) tem para João esse sentido. Há notícias de que, na diáspora, longe de Jerusalém, do Templo e da estrita observância das tradições judaicas, muitos grupos de judeus, aos poucos, adaptaram o sinal da pertença: não mais a circuncisão, mas uma “imersão ritual”. Embora seja bastante difícil estabelecer um paralelo histórico entre João Batista, essas comunidades da diáspora ou a fraternidade dos Essênios[1], é certo que o evangelista conhecia essas experiências.


Por fim, para Mc, a pregação de João é provisória. O evangelista coloca essa convicção nos lábios do próprio João: “Depois de mim virá Aquele que é mais forte” (v. 7). E, na ordem da narrativa, Jesus só iniciará seu ministério “depois que João foi preso” (v. 14).


Consagrado pelo Espírito


 “Ele vos batizará com o Espírito Santo” (v. 8). A experiência judaica não nomeava um “Espírito Santo”, mas mencionava o “espirito de Deus” (a RuaH IHWH) e a presença permanente do Senhor com o seu povo, nas lidas de sua história (SHeKiNaH). E a experiência cristã tematizará, nos moldes da SHeKiNaH, uma presença de Deus que não difere de sua identidade divina, mas Deus mesmo que se nos dá – o Espírito Santo. É com esse Espírito que, segundo João, o Messias batizaria.


É quando, finalmente, pela primeira vez, aparece Jesus, “vindo de Nazaré da Galileia” para ser batizado (v. 9). Ao contrário de Mt, não há em Mc o protesto de João sobre batizar Jesus. E, ao ser batizado, Jesus viu o “céu se rasgar” e ele escuta “uma voz” (v. 10-11). Para manter o segredo messiânico (cf. Estudo 6), somente Jesus é testemunha dessa teofania. A partir da transfiguração é que os discípulos terão acesso a essa mesma “voz do céu”.


A “voz de Deus” ou “voz do céu” (Bat KoL) constitui um gênero literário, presente diante de uma mudança significativa, do anúncio de uma novidade ou às vésperas de uma passagem importante. Lucas fará largo uso desse recurso no Evangelho e nos Atos dos Apóstolos. Nessa passagem, Mc a utiliza para referir a Jesus o Sl 2,7: “Vou proclamar o decreto do Senhor: Ele me disse: ‘Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei!’” – salmo da coroação do rei. A serviço do povo, como um escolhido do Senhor, o rei se tornava seu enviado. Do mesmo modo, Jesus é aqui reconhecido como “filho amado e gerado” por Deus.


Sobre ele desce o Espírito, “como pomba” (v. 10). Nas Escrituras, o Espírito foi representado por várias imagens: pomba, fogo, línguas... A pomba se mostra particularmente significativa por evocar o mundo novo, nascido do dilúvio (Gn 8,8-12), quando Noé solta repetidas vezes a pomba, até que ela não volte mais à arca, sinal de que, em algum lugar, as águas haviam baixado – motivo de esperança e sinal da fidelidade de Deus.


Chamado ao deserto


Jesus, o Messias, “batizará com Espírito” (v. 8) e, por isso, recebe o mesmo Espírito (v. 10). Possuído por esse Espírito, Jesus se deixa conduzir por ele ao deserto (v. 12). O símbolo do Batismo de João agora se completa: Jesus não só passou pelo Jordão, tal como os ancestrais para formar o povo de Deus em Israel, mas foi conduzido ao deserto, “onde foi provado por quarenta dias” (v. 13), imagem dos quarenta anos de provação do povo, no Êxodo. Porém, ao contrário dos antigos, que foram provados e reprovados no deserto (Sl 80,7), de modo que nenhum dos que partiram chegou à terra (Dt 32,50-52), Jesus foi provado e aprovado, “conviveu com as feras, mas os anjos o serviram”.


Não se encontram em Mc as “três tentações” de Jesus, conforme apresentam Mt e Lc. Tampouco aqui há qualquer diálogo entre Jesus e Satanás. Vale lembrar, aliás, que Satanás, conforme se verá com frequência em Mc, não é tanto uma entidade pessoal, mas tudo quanto se oponha ao Reino. A figuração do diabo ou demônio como personagem pessoal pertence à tradição posterior à redação dos Evangelhos.


* * *


João Batista traz em si a imagem do profeta, que prefigura o Messias e convida a restaurar a fidelidade à Aliança. No Jordão, convida à confissão dos pecados e ao recomeço de vida – o novo povo de Deus. Jesus é o Messias que, depois de João, vem para batizar com Espírito. Antes, ele mesmo é ungido por esse Espírito que lhe revela a filiação divina e o prova no deserto, tal como o povo de Israel. De lá, guiado pelo Espírito, Jesus sairá aprovado e iniciará sua pregação, conforme veremos na próxima semana.



 






[1] Comunidade de judeus que viviam à margem do Mar Morto, numa forma de vida semelhante àquela dos cristãos que, a partir do séc. IV, se retirariam ao deserto e, mais tarde, formariam os primeiros mosteiros. Os Essênios esperavam a vinda iminente do Senhor e se preparavam através da consagração de sua vida, da observância criteriosa das leis de pureza e da oração.