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30. Os Discípulos Cegos e o Cego Discípulo (Mc 10,35-52)

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07.05.2014 | 13 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
30. Os Discípulos Cegos e o Cego Discípulo (Mc 10,35-52)

10


35 Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se de Jesus e lhe disseram: “Mestre,queremos que faças por nós o que te vamos pedir”.
36 Ele perguntou: “Que quereis que eu vos faça?”
37 Responderam: “Permite que nos sentemos, na tua glória, um à tua direita e o outro à tua esquerda!”
38 Jesus lhes disse: “Não sabeis o que estais pedindo. Podeis beber o cálice que eu vou beber? Ou ser batizados com o batismo com que eu vou ser batizado?”
39Responderam: “Podemos”. Jesus então lhes disse: “Sim, do cálice que eu vou beber, bebereis,com o batismo com que eu vou ser batizado, sereis batizados.
40 Mas o sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não depende de mim; é para aqueles para quem foi preparado”.
41Quando os outros dez ouviram isso, ficaram zangados com Tiago e João.
42 Jesus então os chamou e disse: “Sabeis que os que são considerados chefes das nações as dominam, e os seus grandes fazem sentir seu poder.
43 Entre vós não deve ser assim. Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve,
44 e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o escravo de todos.
45 Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos”.
46 Chegaram a Jericó. Quando Jesus estava saindo da cidade, acompanhavam-no os discípulos e uma grande multidão. O mendigo cego, Bartimeu, filho de Timeu, estava sentado à beira do caminho.
47 Ouvindo que era Jesus Nazareno, começou a gritar: “Jesus, Filho de Davi, tem compaixão de mim”.
48 Muitos o repreendiam para que se calasse. Mas ele gritava ainda mais alto: “Filho de Davi, tem compaixão de mim”.
49 Jesus parou e disse: “Chamai-o!”Eles o chamaram, dizendo: “Coragem, levanta-te! Ele te chama!”
50 O cego jogou o manto fora, deu um pulo e se aproximou de Jesus.
51 Este lhe perguntou: “Que queres que eu te faça?” O cego respondeu: “Rabûni, que eu veja”.
52 Jesus disse: “Vai, tua fé te salvou”. No mesmo instante, ele recuperou a vista e foi seguindo Jesus pelo caminho.

Situando...


Pela última vez, na subida para Jerusalém, Jesus prenunciou sua paixão (cf. Mc 10,32-34). Conforme já vimos, esses anúncios antecipados têm por finalidade literária abrir os olhos dos discípulos aos acontecimentos que virão. Porém, mais que isso,pretendem interpelar os leitores, também eles discípulos, e responder à comunidade cristã pós-pascal (como nós) a pergunta sobre “quem é Jesus”.


Conforme os estudos anteriores, os “anúncios da paixão” foram sempre acompanhados de atitudes de Jesus que, junto com suas palavras, elucidavam quem ele é. Quase sempre, esses anúncios são acompanhados pela incompreensão dos discípulos. Desta vez, não será diferente...


Os discípulos cegos


Jesus e os discípulos estão ainda a caminho de Jerusalém (v. 32). Tiago e João, filhos de Zebedeu, já nos foram apresentados por Mc entre os primeiros discípulos de Jesus (cf. Mc 1,18) e suas testemunhas em momentos importantes (cf. Mc 1,29s; 5,37; 9,2s). E são exatamente esses dois que se dirigem ao Mestre com um pedido (v. 35). Interessante que Mc diga terem sido os próprios Tiago e João a se dirigirem a Jesus. Mt reformulará o texto, dizendo que a mãe deles teria feito o pedido que segue. Como já constatamos, Mc não tem o pudor de proteger os discípulos de situações embaraçosas aos olhos da comunidade posterior (cf. Mc 9,38). Jesus se põe pronto a ouvir o pedido (v. 36). Para surpresa nossa, os discípulos pedem que “na glória, se assentem um à direita e outro à esquerda” de Jesus (v. 37). O pedido é censurável, com certeza. Como, já a esta altura do caminho, os discípulos podem pretender algo tão desmedido? Acaso ainda não compreenderam que tipo de Messias é Jesus, a quem seguem já há tanto tempo? Não bastaram suas palavras, por três vezes reiteradas, sobre o destino que o aguarda em Jerusalém? Ou mesmo seus gestos, que sempre acompanham os anúncios da paixão?


Lembremo-nos de que, no primeiro anúncio, Pedro repreende Jesus por falar abertamente sobre o sofrimento que o espera, enquanto Jesus se conforma ao Servo Sofredor (Mc 8,32). Pouco adiante, Jesus se transfiguraria diante dele (Mc 9,2s). No segundo anúncio, os discípulos estão discutindo quem é o maior (Mc 9,33s) e reclamando exclusividade na continuação da missão de Jesus (Mc 9,38s). Por isso, o Mestre os admoesta à oração e à paz (Mc 9,29.42-50). Por fim, no terceiro e último anúncio, enquanto Jesus abraça as crianças e diz que o Reino exige a despretensão delas (Mc 10,13-16), Tiago e João apresentam esse inusitado pedido.


Porém, em vez de censurar os discípulos, é preciso admitir: quem de nós nunca incorreu nesse mesmo engano? Pois também hoje é possível que o caminho do discipulado seja para nós pretexto para afirmação de nossas ambições de privilégio, posição, poder e prestígio. Talvez, também nós estejamos esperando um Messias que nos renda um lugar de destaque. Ou, quem sabe, até toleremos um Messias sofredor, contanto que seu sofrimento nos livre dos nossos, dos dilemas inerentes ao caminho. Ou ainda, pode ser que creiamos numa retribuição necessária, em que os sofrimentos por causa do Reino sejam recompensados com prosperidade, saúde ou favores especiais de Deus. Se nossas expectativas de Messias forem essas, a resposta de Jesus aos discípulos servem também para nós: “Não sabeis o que estais pedindo” (v. 38).


De fato, os dois não sabiam o que estavam pedindo. Pois, muito em breve, ambos seguiriam de perto os passos do Mestre, não rumo à glória e ao poder, mas ao sofrimento e à dor – o evangelista bem sabe. Esse é o cálice que os dois dividiriam com Jesus, o “batismo” com o qual seriam batizados, demonstrando sua fidelidade ao Senhor de suas vidas (v. 38-39). Mas nem assim, fiéis até a morte, lhes está assegurado seu pedido. Mais tarde entenderão: no Reino, não há primeiros e últimos, privilegiados e desfavorecidos. Os lugares foram preparados pelo Pai, para todos.


A reação dos demais, ao perceberem o pedido de Tiago e João, é de evidente reprovação – mas não difere muito quanto às motivações! Ao que parece, eles não repreendem os dois irmãos pelo descabimento do pedido, mas “se zangam”com eles (v. 41). Será que eles também queriam os lugares de honra pedidos pelos dois? Disputariam esses lugares, se necessário? Este fenômeno também é comum, nas comunidades de ontem e de hoje: com frequência, repreendem-se os irmãos, utilizando-se das mesmas ferramentas, das mesmas motivações que os conduziram ao erro. Esquecemo-nos de que, muitas vezes, a gravidade do pecado é apenas questão de oportunidade. E que, uma vez no lugar daquele que errou, talvez também nós tivéssemos feito o mesmo – ou até delito mais grave. Por isso, Jesus os chamou a todos, Tiago e João junto com todos os outros, para dar-lhes uma importante lição (v. 42).As organizações políticas das nações são frequentemente injustas e opressoras; mas, ainda que não possamos fazer muito para mudar isso, uma coisa podemos fazer: não repetir em nossas relações essa mesma injustiça e a mesma opressão. “Quem quiser ser o maior, seja aquele que serve” (v. 43) e o que almeja o primeiro lugar seja o servo de todos os demais (v. 44). Esta é a maneira do Reino; assim se comporta Jesus e para isto ele saiu do Pai: para entregar-se pelos seus, até a entrega definitiva de sua própria vida. Vividas como entrega, sua vida e sua morte têm valor “redentor”, de “resgate” (v. 45).


O cego discípulo


No caminho para Jerusalém, Jesus e os discípulos chegam a Jericó (v. 46). Já na saída da cidade, Jesus está sendo seguido “pelos discípulos e pela multidão”, ou seja, pelos “de dentro” e pelos “de fora”. Do lado de fora da cidade, está um homem, descrito de maneira comovente por Mc: cego, mendigo, assentado fora dos portões da cidade, à beira do caminho. Nem nome ele tem, mas carrega como identidade apenas uma referência ao nome de seu pai (“Bartimeu” literalmente significa “filho de Timeu”). Ele tem, pois, todas as características de um “de fora”, o mais “de fora” dentre todos: não pode ver Jesus para reconhecer nele o Messias (cegueira); não caminha por si mesmo (está assentado); não segue Jesus (jaz à beira do caminho); não convive com os seus (está fora da cidade); vive da dependência e da pena dos demais (mendicância); e sem um nome que revelasse uma missão confiada por Deus (pois essa é a função do nome judaico). Resta-lhe apenas recolher-se na sombra de seu pai, Timeu, longe dos olhares dos cidadãos, sem lugar para ser coisa alguma.


Entretanto, esse homem ouve. O que significa: resta-lhe uma centelha de sensibilidade à palavra de Deus, a possibilidade de cumprir o primeiro dos mandamentos – “Escuta, Israel” (Dt 6,4). E, ouvindo que era “Jesus Nazareno, começou a gritar” pedindo compaixão (v. 47). De onde lhe vem essa força? Donde lhe nasceu essa esperança? Por que chama Jesus “Filho de Davi”, o que equivale dizer “Messias”, se nunca o viu, nem se aproximou dele? Sim... a fé se mantém viva nesse homem, como a brasa que ainda fumega sob uma espessa camada de cinzas...Ele espera o messias. Certamente ainda não sabe que Jesus é um messias diferente, às avessas, o messias inesperado... Mas conserva a esperança messiânica; grita pelo messias, quer seu socorro. Jesus parece surdo e indiferente aos gritos do cego e, impassível, continua seu caminho. Jesus não aceita o título de Filho de Davi, final para Mc ele não é o messias davídico, aquele messias ao modo como os judeus esperavam. Mas tal é a insistência do cego que Jesus manda chamá-lo. Para Jesus não importa se o cego sabe ao certo quem ele é, se o nomeia corretamente. Basta que o cego se atreva a buscar em Jesus a compaixão esperada. Uma força o impulsiona a gritar: um desejo o move. E ele grita mais forte ainda.


Mc diz que, enquanto o cego gritava, muitos o repreendiam para que se calasse (v. 48). Reação natural. Afinal, como aquele que não tinha voz agora se atreve a falar? Como tolerar que um cego mendigo, sem nome e sem lugar, agora interfira no andamento da cidade, requerendo atenção de Jesus? É muito perigoso isto: mesmo sem pedir de Jesus os lugares de honra que no fundo desejaríamos, talvez por vergonha ou acanhamento, na prática afastamos aqueles que tentam se aproximar dele, que pedem sua compaixão e contam com sua atenção. No fundo, todo discípulo tem a tentação de monopolizar o Mestre, querê-lo apenas para si e para o próprio caminho de realização, não tolerando que ele volte o olhar às necessidades urgentes de outros.


Felizmente, Bartimeu não está disposto a se calar. É a chance de sua vida e não pode passar em vão. Por isso, grita ainda mais alto, pedindo de Jesus compaixão. O suficiente para que Jesus pare e mande chamá-lo (v. 49). Surpreendentemente, os mesmos que até há pouco repreendiam o homem para que se calasse, agora o encorajam a se levantar. O que os fez mudar de opinião? A ordem de Jesus? Acaso os discípulos seriam daqueletipo de pessoas que mudam de opinião não tanto por estarem realmente convencidos, mas apenas por causa da palavra da autoridade? Porque isto existe ainda entre nós, nas organizações civis e eclesiásticas: pessoas que fazem o jogo dos interesses do poder, deixando que a segurança institucional do cargo que ocupam lhes determine a medida da caridade e da generosidade para com os outros. Tomara que não... tomara que os discípulos tenham mudado de opinião por obediência à palavra do Mestre, deixando-se tocar por ela, compreendendo progressivamente quem ele é.


O cego não esperou segundo convite. Aguardava por esse momento. Levantou-se, “deu um pulo, jogou fora o manto” e foi ao encontro de Jesus (v. 50). O “manto” é uma roupa de uso eminentemente pessoal, insinua a própria identidade. Nas Escrituras, são conhecidos relatos em que alguém é reconhecido pelo manto que usa (Gn 39,11-18) ou que lega herança a outro alguém por meio do manto (2Rs 2,12-14). Ao “jogar o manto”, Bartimeu se livra de tudo quanto lhe pesava sobre os ombros e sobre a vida: a cegueira, a condição de mendigo, de jogado para fora dos muros de Jericó, à beira do caminho e sem nome. Em seu coração, já está curado.


Jesus lhe pergunta o aparentemente óbvio: “Que queres que eu te faça?” (v. 51). Mas a pergunta é necessária. Quantas vezes pecamos por, muito cheios de nós mesmos, supormos saber tudo quanto as pessoas precisam? Quantas vezes erramos ao oferecer às pessoas aquilo que nós achávamos ser o melhor para elas, não deixando que elas mesmas dissessem a necessidade que as afligia? Muitas vezes, é uma caridade fingida ou interesseira. Ajuda muito mais a nós mesmos e à nossa consciência, que pode dormir em paz, com a sensação de “dever cumprido”. Jesus não é assim. Ao mais marginalizado de todos, Jesus principia por devolver-lhe a voz, o desejo, a possibilidade de ser.


“Mestre, que eu veja” – é sua resposta. Pela primeira vez, Bartimeu é senhor do próprio querer e pode escolher o que o Mestre fará por ele. Como de costume, Jesus diagnostica a mudança que já ocorrera dentro do homem: “a tua fé te curou” (v. 52). Sim, a fé já principiara a cura desde quando Bartimeu se pôs a gritar por compaixão, da beira do caminho onde estava, lançando mão das últimas forças e esperanças que possuía. E continuou a curá-lo quando o pôs de novo de pé, sem o manto da exclusão, rumo a Jesus. Por isso, agora, já não resta outra coisa, senão abrir os olhos, chamando Jesus de “Mestre”. E Jesus acrescenta: “Vai”. Não é próprio de Jesus prender as pessoas a ele, mas despedi-las e entregá-las à própria liberdade, agora curadas e redimidas. Bartimeu, por escolha, torna-se discípulo de Jesus. Como sabemos? Ele “ia seguindo Jesus pelo caminho”.


* * *


Jesus é o Mestre que chama a seguir seus passos. Não em direção à glória, mas àquela entrega que plenifica a vida – ainda que custe suor e sangue. Mas mesmo a fidelidade é dom e dela ninguém pode se gloriar. A nós, discípulos, cabe apenas segui-lo pelo caminho, com olhos cada vez mais abertos e ouvidos atentos.