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27. Os Pequeninos do Reino (Mc 9,30-50)

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10.04.2014 | 10 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
27. Os Pequeninos do Reino (Mc 9,30-50)

9


30 Partindo dali, Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia, mas ele não queria que ninguém o soubesse.
31 Ele ensinava seus discípulos e dizia-lhes: “O Filho do Homem vai ser entregue às mãos dos homens, e eles o matarão. Morto, porém, três dias depois ressuscitará”.
32 Mas eles não compreendiam o que lhes dizia e tinham medo de perguntar.
33 Chegaram a Cafarnaum. Estando em casa, Jesus perguntou-lhes: “Que discutíeis pelo caminho?”
34 Eles, no entanto, ficaram calados, porque pelo caminho tinham discutido quem era o maior.
35 Jesus sentou-se, chamou os Doze e lhes disse: “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos, aquele que serve a todos!”
36 Em seguida, pegou uma criança, colocou-a no meio deles e, abraçando-a, disse:
37 “Quem acolhe em meu nome uma destas crianças, a mim acolhe. E quem me acolhe, acolhe, não a mim, mas Àquele que me
enviou”.
38 João disse a Jesus: “Mestre, vimos alguém expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não andava conosco”.
39 Jesus, porém, disse: “Não o proibais, pois ninguém que faz milagres em meu nome poderá logo depois falar mal de mim.
40 Quem não é contra nós, está a nosso favor.
41 Quem vos der um copo de água para beber porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua recompensa.
42 “E quem provocar a queda um só destes pequenos que creem em mim, melhor seria que lhe amarrassem uma grande pedra de moinho ao pescoço e o lançassem no mar.
43 Se tua mão te leva à queda, corta-a! É melhor entrares na vida tendo só uma das mãos do que, tendo as duas, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga.
[44]
45 Se teu pé te leva à queda,corta-o! É melhor entrar na vida tendo só um dos pés do que, tendo os dois, ser lançado ao
inferno.
[46]
47 Se teu olho te leva à queda, arranca-o! É melhor entrar no Reino de Deus tendo um olho só do que, tendo-os dois, ir para o inferno,
48 onde o verme deles não morre e o fogo nunca se apaga.
49 Todos serão salgados pelo fogo.
50 O sal é uma coisa boa; mas se o sal perder o sabor, como devolver-lhe o sabor? Tende sal em vós mesmos e vivei em paz uns
com os outros”.

Situando...


Ao longo do Evangelho de Mc, Jesus fará três anúncios de sua paixão (cf. Mc 8,31.37; 9,30-37; 10,32-34). Curiosamente, o primeiro anúncio é precedido pela cura de um cego que custa a ver, tanto que Jesus precisa tocar nele duas vezes (Mc 8,22-26– Estudo 23). E o último anúncio será sucedido pela cura de outro cego, Bartimeu, que não só passa a enxergar, mas também torna-se discípulos de Jesus, “seguindo-o pelo caminho”, conforme veremos (Mc 10,46-52). Podemos intuir daí a função desses “anúncios da paixão”: ajudar o discípulo a “abrir os olhos”, a reconhecer Jesus, compreender que tipo de Mestre e que tipo de Messias ele é. Do contrário, corremos o risco de segui-lo, sem nunca tê-lo realmente conhecido. Por isso, os “anúncios da paixão” sempre vêm acompanhados de textos muito reveladores sobre a identidade messiânica de Jesus, como a confissão de fé de Pedro (Mc 8,27-30), a Transfiguração (Mc 9,2-10) e a discussão com os fariseus sobre a fé (Mc 9,14-29 – Estudos 24, 25 e 26). Hoje, nos deparamos com o segundo anúncio da paixão. Junto com ele, Mc nos propõe uma reflexão sobre as disposições do discípulo que, compreendendo sempre melhor, persevera no seguimento de Jesus.


O Messias dos menores


Jesus continua se esforçando para manter o “segredo messiânico”, cada vez mais difícil de guardar (v. 30). Ele e os discípulos estão atravessando a Galileia. Durante a viagem, “ao longo do caminho” (ou seja, no discipulado), Jesus faz o que é próprio do mestre nessa relação: ensina (v. 31). A lição a ser ensinada permanece a mesma, desde o caminho de Cesareia: o Filho do Homem deve ser entregue, sofrer e morrer; mas ressuscitará ao terceiro dia. É o retrato do “messias inesperado”, cuja vitória consiste exatamente no fracasso, semelhante ao Servo Sofredor do profeta Isaías (Estudo 24). Uma vitória que virá não imediatamente, mas na “hora de Deus”, ou seja, “ao terceiro dia”. Ao que parece, os discípulos ainda não entenderam o ensinamento, mas não fazem perguntas (v. 32). Talvez por medo ou pela delicadeza que o assunto exige. Ou será porque estão demasiado entretidos com outra discussão, aparentemente bem mais interessante?


Chegaram a Cafarnaum, em casa; ou seja, continuam na intimidade do discipulado (v. 33). Nessa intimidade, Jesus quer saber o que tinha tirado a atenção dos discípulos pelo caminho, a ponto de nada entenderem do ensinamento, mas também não fazerem nenhuma pergunta. Quando Jesus falara abertamente sobre sua morte primeira vez, Pedro o repreendeu com severidade (Mc 8,32). Agora, porém, nem isso ocorreu, nem uma repreensão ou desentendimento. Afinal, o que tinham discutido tão calorosamente? O silêncio dos discípulos confirma a expectativa do Mestre: tinham discutido quem deles era o maior (v. 34). Uma discussão sem fundamento, pois a resposta é evidente: o maior é o Mestre, que segue à frente deles e lhes mostra o caminho. Porém, pode acontecer que, mesmo estando no caminho com Jesus, ontem e hoje, muitos discípulos se percam em discussões que nada tem a ver nem com o caminho e nem com Jesus. Pelo contrário, há quem faça do caminho um pretexto para se colocar superior aos outros, pretensamente mais entendido dos ensinos do Mestre, quase dispensando a necessidade de ser guiado por Ele. Esses, os “maiores” que se bastam a si mesmos, ainda que estejam aparentemente “no caminho” frequentemente se desatentam do Mestre, esquecem-se de que, maior mesmo, só Ele. Talvez, estejam na verdade seguindo outros caminhos: o da própria realização a qualquer preço, mesmo a custo da infelicidade de outros; o sucesso desmedido que exalta a si mesmo e não ao Mestre; os interesses e os benefícios que podem ser extorquidos ao longo do trajeto, como boa fama, dinheiro, bajulação... Um “caminho dentro do caminho”, cuja direção não é ditada pelo Mestre, mas pela própria cegueira.


Jesus se assenta – essa é a posição de quem ensina, de modo que se poderia esperar um longo sermão sobre a humildade e a pequenez (v. 35). Em vez disso, diz uma única frase lapidar e manifesta um gesto profético. A frase: o primeiro identifica-se com o último, o servidor dos demais. O gesto: abraçado a uma criança (v. 36), exemplifica a pequenez a ser imitada pelos discípulos (v. 37). Pois na colhida dos pequenos (da própria pequenez e da pequenez dos outros) se acolhe o próprio Jesus e, acolhendo-o, acolhe-se o Pai que o enviou. E Jesus demonstra isso exatamente na acolhida da criança: incapaz de realizar as obras da Lei, a criança não possui merecimentos que a justifiquem e purifiquem. Ao contrário do que significam para nós, as crianças inspiravam aos judeus impureza legal, já que até a maioridade não podiam exercer as obrigações religiosas. No abraço de Jesus, Mc parece incluir todos os desvalidos, que não têm por eles o favor da Lei e os méritos advindos do cumprimento religioso.


Sem exclusivismos 


Em seguida, Mc expõe João à correção de Jesus. Ao contrário do que se observará nos Evangelhos seguintes (Mt e Lc), Mc não tem ainda o pudor de preservar os Doze de situações constrangedoras. Neste caso, João diz ter proibido que um homem expulsasse demônios em nome de Jesus, porque o pretenso exorcista não pertencia ao grupo dos discípulos (v. 38). Jesus responde, acenando que o caminho do discipulado não admite exclusivismos ou privilégios. Não há quem faça o bem e, fazendo-o, não esteja de algum modo vinculado ao “caminho” e ao Mestre (v. 39). “Quem não é contra nós está a nosso favor” (v. 40). Ao contrário de Mt e Lc, que inverterão esse dito, propondo: “Quem não ajunta comigo, dispersa” (Mt12,30 e Lc 11,23), Mc mantém a consciência de que tudo que se relaciona ao Reino, seja um gesto grandioso como a expulsão dos demônios, seja um gesto pequenino como dar um copo d’água, de alguma maneira se refere a Jesus – ainda que não explicitamente feito em seu nome (v. 41). De fato, a comunidade cristã não é proprietária do Ressuscitado nem de seu Espírito. E todo o bem realizado recebe sua recompensa, a saber: a instalação do Reino de Deus.


Zelo pelos menores 


Ainda com relação aos “pequeninos do Reino”, Jesus previne contra os escândalos. Numa imagem exagerada, chega a dizer que seria preferível “atirar-se ao mar com uma pedra de moinho atada ao pescoço do que provocar a queda de um só dos menores” (v. 42). E para tanto, valem todos os esforços, de modo que nada, por mais útil e valioso que seja, mesmo que fossem (figuradamente) as próprias mãos ou os próprios pés, nada sirva ao escândalo dos pequenos (v. 43.45.47).


Algumas traduções, como a CNBB que utilizamos, omitem os versículos 44 e 46. O texto omitido, nos dois versículos, é idêntico ao do v. 48: “onde o verme deles não morre e o fogo nunca se apaga”. E, realmente, o texto omitido falta em muitos manuscritos gregos importantes. Ao longo da história, é considerado improvável que alguém tenha retirado alguma parte do texto sagrado, mesmo que se tratasse de uma repetição. A hipótese mais razoável é a de que os copistas tenham acrescentado o texto do v. 48 aos vv. 44 e 46, harmonizando literariamente as três advertências de Jesus.


Por fim, os vv. 49 e 50, que a princípio parecem uma ameaça, se revelam como um apelo à fraternidade. Afinal, a certeza de que, um dia, todas as contradições serão finalmente aplacadas e não sobrará nada de ambíguo ou duvidoso (tudo será “salgado pelo fogo”) não nos deve amedrontar, mas nos animar a fazer da vida um empreendimento que vale a pena, conservando “sal” em nós mesmos e espalhando seu sabor por onde passamos – “o Reino de Deus chegou” (Mc 1,15). Além disso, se é verdade que o escândalo faz perder, o sal faz conservar e curar. Nada melhor que a fraternidade para prevenir ou curar os escândalos.


* * *


Jesus é um Messias diferente – compreendemos cada vez mais. É preciso manter nele os olhos, para não ocorrer de procurarmos e seguirmos outro Messias que não ele. Por vezes, mesmo no caminho, nos distraímos com outras buscas; esquecidos do Mestre, podemos nos perder na ilusão de sermos os “maiores”. Jesus nos lembra que veio para os pequeninos, que desconhecem soberbas e pretensos exclusivismos.