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25. Transfigurado (Mc 9,1-13)

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26.03.2014 | 10 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
25. Transfigurado (Mc 9,1-13)

9


1 E disse-lhes: “Em verdade vos digo: alguns dos que estão aqui não provarão a morte, sem antes terem visto o Reino de Deus chegar com poder”.
2 Seis dias depois, Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João e os fez subir a um lugar retirado,no alto de uma montanha, a sós. Lá, ele foi transfigurado diante deles.
3 Sua roupa ficou muito brilhante, tão branca como nenhuma lavadeira na terra conseguiria torná-la assim.
4Apareceram-lhes Elias e Moisés, conversando com Jesus.
5 Pedro então tomou a palavra e disse a Jesus: “Rabi, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”.
6 Na realidade, não sabia o que devia falar, pois eles estavam tomados de medo.
7 Desceu, então, uma nuvem, cobrindo-os com sua sombra.E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado. Escutai-o!”
8 E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém: só Jesus estava com eles.
9 Ao descerem da montanha, Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem
ressuscitasse dos mortos.
10 Eles ficaram pensando nesta palavra e discutiam entre si o que significaria esse “ressuscitar dos mortos”.
11 Perguntaram a Jesus: “Por que os escribas dizem que primeiro deve vir Elias?”
12 Ele respondeu: “Sim, Elias vem primeiro, para pôr tudo em ordem. No entanto, como está escrito a respeito do Filho do Homem que ele deve sofrer muito e ser desprezado?
13 E eu vos digo mais: também Elias veio, e fizeram com ele tudo o que quiseram, exatamente como está escrito a seu respeito”.

Situando...


No início do Evangelho, Marcos se dispusera a responder à pergunta “quem é Jesus?” com duas catequeses: ele é o Cristo e é o Filho de Deus (cf. Mc 1,1). No Estudo 24, passamos pelo texto que encerra a primeira catequese e principia a segunda (Mc 8, 27-33). Nele, Pedro, em nome dos demais discípulos e pela primeira vez, responde à pergunta fundamental, afirmando: “Tu és o Cristo”.


Mas é o mesmo Pedro que, também em nome dos demais, demonstra não ter ainda compreendido todas as consequências dessa confissão de fé. Afinal, que Cristo é Jesus? Em meio a tantas esperanças messiânicas, algumas mais e outras menos justificáveis, a quais Jesus corresponde? É possível que Jesus frustre muitas expectativas de messianismo, de ontem de hoje? Vimos que sim, pois ele é o “Cristo Servo Sofredor”, um Messias inesperado que vence exatamente na medida de seu aparente fracasso (cf. Mc 8,31). Por isso, o caminho do discípulo continua...


Transfigurado


O capítulo 9 se abre com uma declaração curiosa de Jesus: “muitos não provarão a morte sem terem visto o Reino de Deus chegar com poder” (v. 1). Ao contrário das expectativas de um “fim trágico do mundo”, que muitos ainda cultivam e que, de tempos em tempos, volta à moda das pretensas previsões de futuro, Jesus fala da chegada iminente do Reino, “pra já”. Tal como já anunciara desde o começo: “o tempo já foi cumprido e o Reino de Deus é iminente” (cf. Mc 1,15). A esta altura, também nós já compreendemos que o Reino não é uma realidade guardada para depois da morte, para ser vivido fora do mundo, “no céu”. Pelo contrário, o Reino nos chega exatamente no mundo, em meio às inquietudes da vida, entre suas realizações e sofrimentos. Todos quantos se encontram com Jesus e têm a vida transformada por ele já experimentam, nos limites da vida e do mundo, aquela plenitude à qual foi destinado todo ser humano. Ou seja, vive essas realidades agora, mesmo que o Reino seja sempre uma tarefa inacabada, um desafio pendente, um “vir a ser”. É isto que chamamos “dimensão escatológica do Reino de Deus”: já é, mas não totalmente; já se dispõe como experiência, mas não inda em plenitude; sempre inacabado, como horizonte que se busca e meta que se persegue.


Mas essa exortação de Jesus bem serve de moldura ao texto que vem. Pois o relato seguinte, a “Transfiguração”, pode ser exatamente um emblema dessa “tensão escatológica”: a glória do Ressuscitado antecipada aos discípulos, mas não ainda totalmente. De modo que, como já vimos em outras passagens (cf. p. ex.: Mc 4,35-41; 5,1-20; 6,45-52), também esta se refere à consciência pascal das comunidades e ao seu testemunho do Ressuscitado.


Jesus toma consigo Pedro, Tiago e João e os leva “a sós, a um lugar retirado, no alto de uma montanha” (v. 2). Essa intimidade com o Mestre é necessária a todos quantos serão testemunhas de sua ressurreição. Pois a fé pascal não é simples compreensão cuidadosa de uma lição, mas uma experiência na qual se mergulha sempre de novo, junto ao Mestre. Igualmente significativa é a “montanha”. Ao longo das Escrituras de Israel, muitos “subiram a montanha” em busca de Deus e lá o encontraram. Não porque ele se mantenha longe do seu povo ou deva ser buscado em lugares distantes. Mesmo permanecendo em suprema transcendência, Deus se mostrou infinitamente próximo, sempre pronto a oferecer aos seres humanos a Aliança de sua amizade. Mas ocorre que, no alto da montanha, longe do vozerio desordenado das cidades e dos afazeres urgentes do campo, é possível ouvir com mais clareza a voz silenciosa de Deus, compreender sua revelação, discernir seus caminhos. Moisés e Elias, como à frente veremos, foram homens por excelência experimentados na arte de encontrar Deus no alto das montanhas, nos desertos, nos lugares ermos – símbolos da solidão em que habita cada coração humano. E agora, “seis dias depois”, ou seja, fechando o ciclo perfeito de uma semana, chegou a vez dos discípulos encontrarem seu Senhor no alto do monte: Transfigurado, quer dizer, mudado de figura, transpostos os limites imediatos da vida cotidiana, ressuscitado e presente em Espírito em cada coração que nele crê.


O texto é bastante plástico na descrição: as roupas de Jesus se tornam brilhantes e de grande brancura (v. 3). São sinais da manifestação de Deus e de sua mensagem, como já ocorrera tantas vezes no Antigo Testamento. Também no relato pascal, no fim de Mc, o anúncio da ressurreição será feito às mulheres por um “jovem vestido de branco” (Mc 16,5).


Em seguida, aparecem ao lado de Jesus os típicos “homens da montanha”: Moisés e Elias (v. 4). Por causa de sua intimidade com o Deus de Israel, esses homens são também símbolos da Escritura: Moisés recebeu a Lei, a Torah do Sinai e a transmitiu ao povo; e Elias representa os inúmeros profetas que, nos momentos de dificuldade, recordaram ao povo a necessária fidelidade à mesma Aliança. Ali, diante de Jesus, está a Escritura inteira: Moisés e Elias. E Jesus “conversa com eles”.


            Pedro, como quase sempre falando em nome de todos, talvez expressando um dilema da comunidade pós-pascal, manifesta um desejo inusitado: “construir três tendas” para abrigar Jesus, Moisés e Elias (v. 5). De fato, para os primeiros discípulos de Jesus, muitos advindos da fé judaica e frequentes às sinagogas, mas agora reunidos nas comunidades em torno à fé pascal, esse foi um dilema muito sério e poderia ser assim expresso: se agora cremos no Ressuscitado, o qual dizemos ser nosso “Senhor”, que faremos da Escritura (judaica)? Jesus é o Messias previsto pela Torah? Devemos conservá-la, junto aos ensinamentos de Jesus? Afinal, a “tenda da comunidade”,na qual habita Jesus Ressuscitado, pode abrigar também Moisés e Elias – a Torah? O próprio evangelista sinaliza o quão confuso Pedro estava, “sem saber o que dizer, tomado de medo” (v. 6). Também na ressurreição isso ocorrerá. As mulheres irão embora “cheias de medo”, “sem dizer nada a ninguém” (Mc 16,8). Nos relatos pascais de Mt e Lc, frequentemente a primeira reação dos discípulos, ao encontrarem o Ressuscitado, será de medo e confusão (cf. Mt 28,10; Lc 24,37).


Entretanto, Deus mesmo parece vir ao encontro dos seus para tranquilizá-los e desfazer todo equívoco. “Uma nuvem” desce sobre eles – sinal teofânico recorrente no Antigo Testamento (Cf. Ex 13,20; 14,19; 16,10; 19,9.16; 20,21; 24,15 e tantos outros). E uma voz se faz ouvir. Como no batismo de Jesus, a “voz do céu” é um gênero literário que expressa uma revelação importante, em momentos de crise ou dúvida (cf. Estudo 8). Num momento em que a comunidade não sabe bem como estabelecer a relação entre Jesus Ressuscitado e as antigas Escrituras, a voz recorda: “Este é o meu Filho muito amado. Escutai-o” (v. 7). Aqui, a revelação do céu não se dirige mais somente a Jesus, como no batismo (“Tu és o meu Filho muito amado...”), mas aos discípulos, já rompendo gradativamente o segredo messiânico. Eles mesmos já confessaram: “tu és o Cristo” (Mc 8, 29). E acrescenta: “escutai-o”. O verbo é o mesmo que introduz a Torah e a profissão de fé dos antigos: “Escuta, Israel...”. Olhando em volta, os discípulos não viram mais ninguém, mas “só Jesus com eles” (v. 8). Então, compreendemos: sim, Jesus é o Messias, mesmo que inesperado. Nele, a Escritura se cumpre plenamente. E, mais que a Moisés e a Elias, é a Ele devemos ouvir e seguir, pois a mesma voz que falara aos antigos fala também agora, em Jesus. Ele é Presença na comunidade de seus discípulos, após a Páscoa – até hoje. Não o vemos mais, mas ouvimos sua Palavra e reconhecemos sua ação.


Descendo da montanha, permanece o mandado do segredo messiânico (v. 9). De fato, muito de nossa intimidade com o Mestre pertence tão somente à relação do discipulado. Ademais, já sabemos que a fé não é uma lição aprendida “por ouvir contar”, mas uma experiência que se alimenta do seguimento de Jesus. Para os primeiros discípulos, porém, esse segredo tem um limite: “a ressurreição do Filho do Homem”. Embora não compreendam ainda, entenderão na hora certa: a partir da ressurreição, o anúncio do Senhor vivo se tornará imperativo. E, finalmente, esse pedido de Jesus, que remete à Ressurreição, fecha a moldura pascal do relato.


Elias


A pergunta dos discípulos é legítima. Segundo as Escrituras, Elias não morreu, mas foi arrebatado num carro de fogo, quando entregou sua sucessão a Eliseu (cf. 2Rs 2,11ss). A tradição farisaica afirmava, entre outras coisas, que o mesmo Elias voltaria para preparar a vinda do Messias. Se é verdade que Jesus é o Messias, como disse Pedro há pouco, onde está Elias, para cumprir as Escrituras? (v. 11). A resposta de Jesus insinua que os discípulos estão lendo apenas parcialmente os textos (v. 12). Eles se lembraram de Elias, mas ainda não compreenderam os textos que se referem aos sofrimentos do Messias, tal como Jesus mesmo já confirmara, após a confissão de Pedro (Mc 8,31). Mas Jesus admite: Elias já veio e fez tudo quanto lhe cabia fazer – preparar os caminhos (v. 13). É João Batista, interpretará depois Mt (cf. Mt 17,13). Resta agora ao Messias cumprir tudo quanto está escrito a seu respeito, inclusive o sofrimento e a rejeição.


 * * *


Jesus é o Cristo. Bem diferente do que se poderia supor, mas verdadeiramente o Cristo. Conforme as Escrituras, foi incompreendido e rejeitado. Ainda hoje, há quem o “siga enganado”, não conhecendo quem ele realmente é, pois é exatamente em seu abandono e rejeição, vividos como entrega a Deus, que ele se mostra o Senhor. A nós, discípulos, cabe escutá-lo e aprender dele o caminho que também é nosso.