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23. Fartura, Decepção, Esquecimento e Cegueira (Mc 8,1-26)

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13.03.2014 | 12 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
23. Fartura, Decepção, Esquecimento e Cegueira (Mc 8,1-26)

8


1 Naqueles dias, novamente se juntou uma grande multidão e não tinham o que comer. Jesus,então, chamou os discípulos e disse:
2 “Sinto compaixão desta multidão! Já faz três dias que estão comigo e não têm o que comer.
3 Se eu os mandar embora sem comerem, vão desfalecer pelo caminho; e alguns vieram de longe”.
4 Os discípulos responderam: “De onde conseguir,aqui em lugar deserto, pão para saciar tanta gente?”
5 Ele perguntou-lhes: “Quantos pães tendes?” Eles responderam: “Sete”.
6 Jesus mandou que a multidão se sentasse no chão.Depois, pegou os sete pães, deu graças, partiu-os e deu aos discípulos para que os distribuíssem. E distribuíram à multidão.
7 Tinham também alguns peixinhos. Jesus os abençoou e mandou distribuí-los.
8 Comeram e ficaram saciados, e ainda recolheram sete cestos com os pedaços que sobraram.
9 Eram umas quatro mil. Então ele os despediu.
10 Logo em seguida, Jesus entrou no barco com seus discípulos e foi para a região de Dalmanuta.
11 Os fariseus vieram e começaram a discutir com ele. Para pô-lo à prova,pediam-lhe um sinal do céu.
12 Jesus deu um suspiro profundo e disse: “Por que esta geração pede um sinal? Em verdade vos digo: nenhum sinal será dado a esta geração!”.
13 E,deixando-os, entrou de novo no barco e foi para a outra margem.
14 Os discípulos se esqueceram de levar pães; tinham apenas um pão consigo no barco.
15Jesus os advertia, dizendo: “Atenção! Cuidado com o fermento dos fariseus e com o fermento de Herodes”.
16 Os discípulos começaram então a discutir entre si, porque não tinham pães.
17 Percebendo, Jesus perguntou-lhes:“ Por que discutis sobre o fato de não terdes pães? Ainda não entendeis, nem compreendeis? Vosso coração continua endurecido?
18 Tendo olhos, não enxergais, e tendo ouvidos, não ouvis? Não vos lembrais?
19 Quando reparti cinco pães para cinco mil pessoas, quantos cestos recolhestes, cheios de pedaços?” – “Doze”, responderam
eles.
20 “E quando reparti sete pães com quatro mil pessoas, quantos cestos recolhestes,cheios de pedaços?” – “Sete”, responderam.
21 Jesus então lhes disse: “E ainda não entendeis?”.
22 Chegaram a Betsaida. Trouxeram-lhe um cego e pediram que tocasse nele.
23 Tomando o cego pela mão, levou-o para fora do povoado, cuspiu nos olhos dele, impôs-lhe as mãos e perguntou: “Estás vendo alguma coisa?”
24 Erguendo os olhos, o homem disse: “Estou vendo as pessoas como se fossem árvores andando”.
25 Jesus impôs de novo as mãos sobre os seus olhos, e ele começou a enxergar perfeitamente. Ficou curado e era capaz de ver tudo claramente.
26 Jesus despediu-o e disse-lhe: “Não entres no povoado”.
 

Situando...


No capítulo 7 de Mc (cf. Estudos 21 e 22), Jesus supera a impureza das coisas e das pessoas. Já não é mais aquilo que “entra no ser humano” que o torna impuro, mas o que sai dele, ou seja, de seu coração (cf. Mc 7,18-19). Do mesmo modo, já não há mais puros e impuros, judeus ou estrangeiros, “filhos ou cachorrinhos” (cf. Mc 7,28), mas todos chamados à mesma fé, a uma Aliança que agora se estende a todos, como convite aberto. O texto reflete bem o ambiente em que foi escrito, quando a comunidade judaica se viu dividida entre, de um lado, os que permanecem fiéis à Lei de Moisés e à tradição dos antigos e, do outro, aqueles que creem em Jesus como Messias e que aceitam gentios entre os discípulos.


No deserto: larga fartura


O relato que segue (v. 1-9) é paralelo a Mc 6,30-44, quando cinco pães e dois peixes, distribuídos por Jesus e seus discípulos, alimentaram cinco mil pessoas. Mas por que narrar novamente uma distribuição de pães e peixes?


Conforme já vimos no relato do capítulo 6 (Estudo 19), os cinco pães representam a Torah (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio). Os dois peixes completam a Escritura Judaica, pois representam os Profetas (textos proféticos) e os Escritos (textos sapienciais). Ou seja, o ensino de Jesus é a nova Torah, agora dirigida não só aos judeus, mas a todos que ouvem sua voz. E os judeus, que viviam “como ovelhas sem pastor” por falta de ensinamento(cf. Mc 6,34), encontram em Jesus novo alento e alimento para sua caminhada da fé. Sequer importa que os comensais ultrapassem em mil vezes a quantidade de pão. Desse pão, que é Jesus, todos comem até a fartura e ainda se recolhem doze cestos cheios (sinal da tradição apostólica, pela qual a mensagem de Jesus chega a todos).


Desta vez, Jesus está ainda em terra estrangeira (na Decápole?) ou próximo ao Mar da Galileia. Em qualquer dos casos, encontra-se distante do centro judaico de irradiação religiosa, o Templo de Jerusalém. Não é, pois, sem razão que a “multidão que se ajunta em torno de Jesus”, os gentios, não tem “o que comer” (v. 1). Os judeus ainda têm a Torah de Moisés, mas os gentios nem isso possuem. Tal como no capítulo 6, Jesus “sente compaixão” do povo faminto (v. 2). Interessante que, no primeiro relato, são os discípulos que reagem à fome do povo. Talvez por serem também eles judeus. Aqui, porém, é Jesus mesmo que constata a necessidade de dar a eles o que comer, pois já há “três dias” o seguem. O terceiro dia é a hora madura, o momento certo em que Deus age em favor dos seus. Foi “na manhã do terceiro dia” que a Torahfoi entregue a Moisés (cf. Ex 19,16ss) como também na madrugada de um “terceiro dia”, tornado agora o “primeiro dia” da nova criação, que Jesus ressuscitou (cf. Mc 8,31; 9,31; 10,34; 16,2).


Segundo Jesus, é até possível que alguns desmaiem pelo caminho, pois “vieram de longe” (v. 3). De fato, entre os gentios há muitos judeus da diáspora, dispersos pelo mundo grego desde a destruição de Jerusalém (no ano 70) e a guerra que a precedeu. Também deles Jesus se compadece, o que equivale dizer: também a eles, gregos e judeus da diáspora, a comunidade cristã pós-pascal deve anunciar a boa notícia do Reino de Deus, que chegou (Mc 1,15).


“O lugar é deserto” e não há onde conseguir alimento, confirmam os discípulos (v. 4). E, novamente, Jesus pede deles uma solução: “Quantos pães tendes?” (v. 5). Se no primeiro relato tinham cinco, imagem da Torah, aqui eles têm sete. Um número de plenitude, que por si só sugere ser capaz de alimentar a quantos forem os comensais. Mas, além disso, remonta a tradição diaconal da Igreja. Em At 6,1-6, encontramos um relato em que exatamente as viúvas vindas do mundo grego reclamam desassistência no serviço da comunidade e, para resolver o problema, são escolhidos “sete homens de boa reputação e cheios do Espírito” (At 6,3). Se olharmos com cuidado seus nomes, veremos que são gregos esses primeiros sete “diáconos”. Assim, para alimentar os gentios e os que vêm da diáspora, nada mais apropriado que “sete pães”.


O versículo seguinte é análogo ao do relato primeiro: a multidão se senta, Jesus toma os pães, dá graças, parte-os (verbos eucarísticos) e entrega aos discípulos para que distribuam à multidão (v. 6). Há também “alguns peixinhos”, que são igualmente distribuídos (v. 7). Todos comem e se saciam (v. 8). Do pão oferecido por Jesus, que é ele mesmo distribuído a todos quantos ouvem seu ensino, todos podem se alimentar com fartura. E os cestos restantes não são doze, como no capítulo 6, mas sete (como os pães distribuídos, ou como os diáconos gregos). E os comensais eram “quatro mil” (v. 9), ou seja, gentios aos milhares, advindos dos quatro cantos da terra (4 x 10 x 10 x 10). A eles a comunidade cristã se dirige e eles, saciados por Jesus, podem testemunhar, pelos muitos caminhos que conduzem a todo o mundo, a largueza farta do ensino oferecido por Jesus.


Em Dalmanuta: triste decepção


Ainda hoje se discute onde ficaria esse lugar chamado “Dalmanuta”. Talvez, à beira do Mar da Galileia, pois Jesus se dirige para lá de barco. Mas não importa muito. Interessa o que Mc nos diz: Jesus empreendeu uma travessia para lá com seus discípulos (v. 10). Por causa dessa “travessia”, poderíamos esperar um relato pascal. Mas logo vemos que isso não ocorrerá, pois os “fariseus pedem de Jesus um sinal do céu” (v. 11). Não para crer nele, mas para “tentá-lo” (ou para “pô-lo à prova”). A esta altura, Mc já nos ensinou isto: não é assim que se compreende “quem é Jesus”; não por “sinais do céu” ou tentando-o, colocando-o à prova. A única forma de compreender quem seja ele e de crer nelecomo Cristo e Filho de Deus é fazendo com ele o caminho, tornando-se discípulo dele, fazendo com ele a “travessia” da Páscoa. É por isso que “Jesus suspira profundamente” (v. 12) e nega a eles seu pedido. Um suspiro de desapontamento ou decepção com essa “geração”. O termo compara esses fariseus à “geração de cabeça dura”, o povo de Deus perdido na idolatria, no deserto (cf. Ex 32,9) e os contrapõe aos gentios que, também no deserto, creram e se alimentaram das palavras de Jesus,no relatoimediatamente anterior. Mc já utilizou essa imagem (cf. Mc 6,52). Aqui, novamente decepcionado, Jesus se retira: “entra de novo no barco e vai para a outra margem” (v. 13) com os discípulos.


No barco: grave esquecimento

Já vimos no Estudo 20 que o barco é dos símbolos mais antigos da Igreja, da comunidade cristã. Nela, de fato, há somente “um pão”. Depois dos relatos da distribuição dos pães, já sabemos: esse único pão que está na barca só pode ser Jesus mesmo (v. 14). Ao que parece, os discípulos se esquecem disso e começam a discutir sobre a falta de pão (v. 16). E é verdade o que diz Jesus: quando a Igreja se esquece que lhe basta seu único Pão, ela começa a se interessar pelo “fermento dos fariseus e de Herodes” (v. 15). Um fermento bastante perigoso, adverte Jesus. Levedada por esse fermento, a barquinha da Igreja pode se esquecer de sua provisoriedade e fragilidade. Talvez, passe a acreditar que sua força advém do poder, da glória do mundo, da autoridade imposta ou da riqueza que passa. Fermento farisaico (separação do mundo, soberba de perfeição, autoridade irrevogável) e fermento herodiano (poder autoritário, tirania injusta, corrupção cortesã) são perigos que, ontem e hoje, rondam a Igreja de Jesus. Quando isso ocorre, também nós nos assemelhamos à “geração de coração endurecido” (v. 17) ou aos idólatras, adoradores de deuses falsos, que se tornam semelhantes aos ídolos que fabricam: têm olhos e não veem, têm ouvidos e não ouvem (v. 18 – cf. Sl115,4-8).


Jesus mesmo recorda aos discípulos: alimentou cinco mil com cinco pães e sobraram doze cestos cheios (v. 19); também alimentou quatro mil com sete pães e ainda recolheram sete cestos (v. 20). E ainda não compreendemos? (v. 21). Ora, somente ele é o Pão que sacia verdadeiramente sua Igreja, somente ele pode saciá-la e nutri-la. Todo pão buscado fora de Jesus é “farisaico” ou “herodiano”: alimentará mal, será fermento mentiroso, pura ilusão e idolatria. Somente com o Pão de Jesus a travessia da Páscoa é possível e somente com ele a Igreja, que somos nós, se nutrirá de pé para testemunhar sua Presença nos mares incertos do mundo.


Em Betsaida: profunda cegueira


Por fim, Jesus chega com os discípulos a Betsaida (v. 22). Lá, trazem-lhe um cego, pedindo que Jesus toque nele. É bonito e inusitado o relato: Jesus o toma pela mão (tal como Deus promete que tomará os cegos pela mão, nos tempos do Messias– cf.Is 42,16), o conduz para fora do povoado, aplica saliva nos seus olhos e toca nele (v. 23). O procedimento é bastante semelhante ao da cura do “surdo gago”, em Mc 7,31-37 (Estudo 22). Também aqui, a saliva e o toque com as mãos remonta o texto do Gênesis, em que Deus forma o homem do pó da terra e aplica-lhe seu sopro de vida (Gn 2,7).


Intrigante, contudo, é que esse homem somente aos poucos volta a enxergar, ao que Jesus precisa tocar nele duas vezes (v. 24-25). Mas não é difícil perceber: assim como os discípulos custam a compreender que somente o pão de Jesus lhes basta (no texto anterior) ou como Pedro demorará a entender que tipo de Messias é Jesus (no texto da próxima semana), assim também nós podemos demorar a responder à pergunta sobre “quem é Jesus” em nossa vida. Aliás, geralmente as cegueiras profundas de nossa alma só são curadas bem aos poucos, depois de muitos encontros com Jesus. Somos muitos os que, por vezes, mesmo tendo já caminhado muito no discipulado, ainda vemos mal; enxergamos “as pessoas como se fossem árvores que andam” (v. 24), não distinguindo bem entre os irmãos e as coisas, os fermentos herodianos e a barca da Igreja. Fazemos das pessoas coisas, provamos os “fermentos dos fariseus” e entramos em qualquer barca que se nos apresente...triste cegueira.


Por fim, o conselho derradeiro de Jesus ao homem curado é muito significativo: “não entres no povoado” (v. 26). Pois algumas cegueiras são adquiridas sozinho, outras nos vêm pelo convívio com as pessoas. Pois alguns, perdidos entre as urgências da vida do povoado, além de cegos, retiram a visão daqueles que se aproximam. Bem sabemos: num grupo de cegos, nada é mais insuportável do que alguém capaz de enxergar. Sua visão desdiz a cegueira da maioria e o tornam incompreendido, perseguido, separado. Que o digam os profetas...


 * * *


 Jesus é o pão da vida, como dirá mais tarde o Evangelho de João. Dele, se alimentam judeus ou gentios, de Jerusalém ou da diáspora. Somente assim, na intimidade do discipulado, alimentando-se cotidianamente de seu ensino, é possível compreender quem ele é. E se, por vezes, nos esquecemos disso, quiçá saibamos acolher as advertências daqueles que emprestam sua voz à profecia e nos lembram: somente o pão de Jesus nos basta.