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21. O Culto e a Vida (Mc 7,1-23)

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26.02.2014 | 9 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
21. O Culto e a Vida (Mc 7,1-23)

7


1 Os fariseus e alguns escribas vindos de Jerusalém ajuntaram-se em torno de Jesus.
2 Eles perceberam que alguns dos seus discípulos comiam com as mãos impuras – isto é, sem lavá-las.
3 Ora, os fariseus e os judeus em geral, apegados à tradição dos antigos, não comem sem terem lavado as mãos até o cotovelo.
4 Bem assim, chegando da praça, eles não comem nada sem a lavação ritual. E seguem ainda outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras, vasilhas de bronze, camas.
5 Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus: “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas tomam a refeição com as mãos impuras?”
6 Ele disse: “O profeta Isaías bem profetizou a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.
7 É inútil o culto que me prestam, as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’.
8 Vós abandonais o mandamento de Deus e vos apegais à tradição humana”.
9 E dizia-lhes: “Sabeis muito bem como anular o mandamento de Deus apegando-vos à vossa tradição.
10 De fato, Moisés ordenou: ‘Honra teu pai e tua mãe’. E ainda: ‘Quem insulta pai ou mãe, deve morrer’.
11 Mas vós ensinais que alguém pode dizer a seu pai e a sua mãe: ‘O sustento que poderíeis receber de mim é ‘corban’, isto é, oferenda’.
12E já não deixais tal pessoa ajudar seu pai ou sua mãe.
13 Assim anulais a palavra de Deus por causa da vossa tradição, que passais uns para os outros. E fazeis ainda muitas outras coisas como essas!”.
14 Chamando outra vez a multidão, dizia: “Escutai-me, vós todos, e compreendei!
15 Nada que, de fora, entra na pessoa pode torná-la impura. O que sai da pessoa é que a torna impura.
[16]
17 Quando Jesus entrou em casa, longe da multidão, os discípulos lhe faziam perguntas sobre essa parábola.
18 Ele lhes disse: “Também vós não entendeis? Não compreendeis que na da que de fora entra na pessoa a torna impura,
19 porque não entra em seu coração, mas em seu estômago, e vai para a fossa?”. Assim, ele declarava puro todo alimento.
20 E acrescentou:“O que sai da pessoa é que a torna impura.
21 Pois é de dentro, do coração humano, que saem as más intenções: imoralidade sexual, roubos, homicídios,
22 adultérios, ambições desmedidas, perversidades; fraude, devassidão, inveja, calúnia, orgulho e insensatez.
23Todas essas coisas saem de dentro, e são elas que tornam alguém impuro”.

Em torno de Jesus


A princípio, é bastante inusitado que “fariseus e escribas de Jerusalém” se ponham “em torno de Jesus” (v. 1). Já vimos muitas vezes que, em Mc, estar “junto a Jesus”, “com Jesus” ou “atrás de Jesus” indica o lugar do discípulo, que fica com Mestre, fita-o com atenção, escuta suas palavras e aprende com ele. Segue-o “pelo caminho”, na imagem tão cara a Mc. Entretanto, esses “inusitados rodeantes” logo mostram sua verdadeira intenção: não tanto aprender com Jesus, mas observar suas fragilidades e as dos discípulos para pô-los à prova (v. 2). Mc já começa a insinuar quem serão os responsáveis pelo processo jurídico que conduzirá Jesus à morte (Mc 8, 31 p. ex.). Aqui, estão os fariseus, sábios da sinagoga, e os escribas, doutores da Torah. Todos, portanto, grandes conhecedores da Escritura. Em torno de Jesus e dos discípulos, o que eles veem? Uma infração às normas de pureza ritual: os discípulos comem sem lavar as mãos. Falta de asseio? Para nós, sim. Mas, como a higiene e a conservação da saúde estão, para a consciência da época, envolvidos por costumes religiosos, a questão se torna mais grave ainda. Aos olhos dos fariseus e dos escribas, os discípulos de Jesus atentam contra a “tradição dos antigos”, os ritos de pureza (v. 3-4). E estar puro é condição para apresentar-se diante do Senhor, na sinagoga e no Templo. A Torah apresenta uma infindável lista de recomendações para manutenção da pureza. Porém, à época de Jesus, esses costumes já se haviam multiplicado interminavelmente...


            A pergunta dos fariseus e dos escribas a Jesus é direta: “por que seus discípulos não seguem a tradição dos antigos?” (v. 5). A questão se dirige à prática dos discípulos, mas também à prática das comunidades, depois da Páscoa. Basta nos lembrarmos que Mc foi escrito num momento em que, gradativamente, as comunidades cristãs se distinguiam da sinagoga judaica e buscavam sua própria identidade. Assim, à época da redação dos Evangelhos, eram comuns os conflitos. Aos olhos dos judeus, as comunidades nascentes desmereciam as antigas tradições judaicas. Para os cristãos, os judeus permaneciam tão cegados pela estrita observância da Escritura que não percebiam que Jesus era o Messias. A esse ambiente no qual nascem os textos chamamos “contexto redacional”. E considerar o “contexto redacional” esclarece muito o sentido das narrativas.


O Culto e a Vida


Na pergunta dos fariseus e dos escribas, o problema é meramente devocional, cultual, litúrgico: os discípulos de Jesus desconsideram a tradição dos antigos e descumprem a pureza ritual (v. 5). Por isso, Jesus responde com o Profeta Isaías (Is 29,13), recordando-lhes o verdadeiro sentido do rito e do culto: a vida ética (v. 6-7). Ao longo da história de Israel, sobretudo depois da instalação do Templo e da Monarquia em Jerusalém, esse princípio foi muitas vezes esquecido e a liturgia se desconectou da vida prática. Concebida como um acontecimento autônomo, à parte, em que interessa o cumprimento das normas rituais, das “rubricas” canônicas, a liturgia se convertia num teatro vazio de sentido. A esse abuso se ergueu o protesto dos profetas (cf. Jl 2,12-13; Is 58,3-12; Am 5,22-24), relembrando que o rito só faz sentido se nasce da vida prática, da fidelidade cotidiana à Aliança e do esforço pela justiça, e se desemboca de novo na vida, dando força e sentido para o viver. Separar a liturgia da vida, a beleza ritual da generosidade de coração, ou a observância devocional do compromisso ético reduz a religião a um formalismo mudo, fetiche hipócrita com ares de sacralidade. Essa convicção justifica as palavras duras de Jesus: “esse povo me honra com os lábios mas seu coração está longe de mim” (v. 6). Pior ainda, a incoerência entre o culto que se presta e a justiça que se pratica reduz a Palavra divina, ainda que lida nos livros santos, a meras palavras humanas; ou seja, significa abandonar os ensinamentos de Deus em troca de preceitos humanos (v. 7-8), dizeres vazios, culto pelo culto, oração fingida. Levar a sério essa advertência de Jesus acarreta sérias repercussões para a maneira como preparamos a liturgia de nossas comunidades...


Um exemplo de como “esvaziar um mandamento de Deus em troca de preceitos humanos” vem a seguir (v. 9). Jesus recorre ao mandamento de “honrar pai e mãe”, inegável e repetidamente expresso na Lei (v. 10 – cf. Ex 20,12; Dt 5,16; Ex 21,17; Lv 20,9). Havia, porém, um preceito chamado corban, uma oferta especial ao Templo, negociada diretamente com o sacerdote. E, separa honrar o corban (altamente lucrativo para o Templo) o fiel comprometesse seus bens a ponto de não poder acudir nas necessidades de seus pais, o cumprimento do preceito justificava o descumprimento do mandamento. Para Jesus, isso configura um absurdo, pois “anula a vontade de Deus por causa da tradição” humana (v. 11-13). Para nós, discípulos e discípulas de hoje, isso também é sério. Afinal, quantos de nós, muitas vezes, alegamos não poder cuidar devidamente das necessidades de nossos pais ou de nossos familiares, sob o pretexto de servir à comunidade? Para Jesus, não há corban que justifique o deszelo pelos progenitores, ou oferenda que justifique o descuido pelos pequenos – por mais indispensável que essas ofertas de tempo, dinheiro ou esforços sejam para a instituição eclesiástica.


Verdadeiro culto


Jesus agora se dirige novamente à multidão, para ensinar (v. 14). A verdadeira pureza ou impureza não depende daquilo “que vem de fora” (seja o lavar as mãos, no caso dos discípulos, seja o cumprimento meramente externo dos mandamentos ou preceitos religiosos – nada disso interfere na pureza ou impureza verdadeiras). Pois a pureza e impureza brotam de dentro (v. 15).


  “Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça!” – esse é o texto do v. 16, que falta em muitos manuscritos importantes. Possivelmente, é um acrescimento posterior, eco de outras passagens semelhantes (Mc 4,9.23).


 “Em casa”, ou seja, no lugar e na intimidade do seguimento, os discípulos questionam Jesus quanto à interioridade ou exterioridade da pureza (v. 17). A resposta é bastante crua: nada que vem de fora, referindo-se aos alimentos, pode deixar alguém impuro, pois não entra em seu “coração”, ou seja, não entra em sua intimidade, não faz parte de sua vida, de seu ser (v. 18-19). Aqui, Mc menciona a pureza dos alimentos, contrária à prática tradicional judaica, e que Lucas confirmará nos lábios de Pedro a partir do episódio da “Casa de Cornélio” (At 10) e que Paulo já atestara na carta aos Romanos (Rm 14). E, se for verdade que o autor do Evangelho de Marcos foi companheiro de Paulo em algumas de suas viagens, teremos aqui a expressão clara da influência paulina no texto de Mc. Também a lista das “doze más intenções” que brotam do coração (v. 21-22) e que tornam a pessoa impura parece remeter à teologia paulina (cf. Gl 5,19s). São essas “más intenções”, segundo Jesus em Mc, que tornam impura a pessoa. Mais que descuidos litúrgicos, são descuidos da prática da justiça, da vida cotidiana, lá onde se realiza a verdadeira e mais importante liturgia (v. 23).


 * * *


Liturgia e vida prática, devoção e compromisso ético são duas faces da mesma fidelidade. Sem repercutir na vida, o culto se esvazia em simples preceitos. Por isso, não é a observância externa de preceitos religiosos que determina a profundidade da experiência, mas a coerência entre a fé que se professa e a vida que se vive. Nisso se distinguem os discípulos de Jesus.