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18. Discipulado, Rejeição e Martírio (Mc 6,1-32)

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05.02.2014 | 14 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
18. Discipulado, Rejeição e Martírio (Mc 6,1-32)

6


1 Saindo dali, Jesus foi para sua própria terra. Seus discípulos o acompanhavam.
2 No sábado,ele começou a ensinar na sinagoga, e muitos dos que o ouviam se admiravam.“ De onde lhe vem isso?”, diziam. “Que sabedoria é esta que lhe foi dada? E esses milagres realizados por suas mãos?
3 Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E suas irmãs não estão aqui conosco?” E mostravam-se chocados com ele.
4 Jesus, então,dizia-lhes: “Um profeta só não é valorizado na sua própria terra, entre os parentes e na própria casa”.
5 E não conseguiu fazer ali nenhum milagre, a não ser impor as mãos a uns poucos doentes.
6 Ele se admirava da incredulidade deles. E percorria os povoados da região, ensinando.
7 Ele chamou os Doze, começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos impuros.
8 Mandou que não levassem nada pelo caminho, a não ser um cajado; nem pão, nem sacola, nem dinheiro à cintura,
9 mas que calçassem sandálias e não usassem duas túnicas.
10Dizia-lhes ainda: “Quando entrardes numa casa, permanecei ali até a vossa partida.
11 Se em algum lugar não vos receberem, nem vos escutarem, saí de lá e sacudi a poeira dos vossos pés, para que sirva de testemunho contra eles”.
12 Eles então saíram para proclamar que o povo se convertesse.
13 Expulsavam muitos demônios, ungiam com óleo numerosos doentes se os curavam.
14 O rei Herodes ouviu falar de Jesus, pois o nome dele tinha-se tornado muito conhecido. Alguns até diziam: “João Batista ressuscitou dos mortos, e é por isso que atuam nele essas forças milagrosas!”
15 Outros diziam: “É Elias!” Ainda outros: “É um profeta como um dos antigos profetas”.
16 Depois de ouvir isso, Herodes dizia: “Esse João, que eu mandei decapitar, ressuscitou”.
17 De fato, Herodes tinha mandado prender João e acorrentá-lo na prisão, por causa de Herodíades, mulher de seu irmão Filipe, com a qual ele se tinha casado.
18 Pois João vivia dizendo a Herodes: “Não te é permitido ter a mulher do teu irmão”.
19 Por isso, Herodíades lhe tinha ódio e queria matá-lo, mas não conseguia,
20 pois Herodes temia João, sabendo que era um homem justo e santo, e até lhe dava proteção. Ele gostava muito de ouvi-lo, mas ficava desconcertado.
21 Finalmente, chegou o dia oportuno. Por ocasião de seu aniversário, Herodes ofereceu uma festa para os proeminentes da corte, os chefes militares e os grandes da Galileia.
22 A filha de Herodíades entrou e dançou, agradando a Herodes e a seus convidados. O rei, então, disse à moça: “Pede-me o que quiseres, e eu te darei”.
23 E fez até um juramento: “Eu te darei qualquer coisa que me pedires, ainda que seja a metade do meu reino”.
24 Ela saiu e perguntou à mãe: “Que devo pedir?” A mãe respondeu: “A cabeça de João Batista”.
25 Voltando depressa para junto do rei, a moça pediu: “Quero que me dês agora, num prato, a cabeça de João Batista”.
26 O rei ficou muito triste, mas, por causa do juramento e dos convidados, não quis faltar com a palavra.
27 Imediatamente, mandou um carrasco cortar e trazer a cabeça de João. O carrasco foi e, lá na prisão, cortou-lhe a cabeça,
28 trouxe-a num prato e deu à moça. E ela a entregou à sua mãe.
29 Quando os discípulos de João ficaram sabendo, vieram e pegaram o corpo dele e o puseram numa sepultura.
30 Os apóstolos se reuniram junto de Jesus e lhe contaram tudo o que tinham feito e ensinado.
31 Ele disse-lhes: “Vinde, a sós, para um lugar deserto, e descansai um pouco”! Havia, de fato, tanta gente chegando e saindo, que não tinham nem tempo para comer.
32 Foram, então, de barco, para um lugar deserto, a sós.
 

Em sua pátria


Após os relatos pascais da “filha de Jairo” e da “mulher hemorroíssa”, Marcos insere um episódio bastante conhecido por nós, que Mateus e Lucas retomarão, com pequenas variantes: Jesus que, após iniciar sua missão em outros lugares, retorna a sua própria terra, seguido pelos discípulos (v. 1). É a cena própria do discipulado, em Mc: o Mestre à frente, os discípulos atrás, seguindo seus passos.


Assim, no sábado, Jesus ensina na sinagoga (v. 2). O Reino já acontece em seu anúncio e é urgente anunciá-lo, pois ele “já chegou”! Um anúncio encantador e embaraçoso, que desperta admiração nos ouvintes. É a típica admiração que Jesus sempre desperta no Evangelho de Mc, aquela que origina a pergunta: “quem é Jesus”, fundamental para que o evangelista possa responder: é o Messias, o Filho de Deus. Aqui, a admiração se dirige à sabedoria de seu anúncio e às obras de suas mãos. Por trás da tradução “milagres”, está a mesma “força” (dynámeis) que curou a hemorroíssa que teve fé (Mc 5,30 – cf. Estudo 17). E assim se completa o quadro do anúncio do Reino: as palavras e os gestos de Jesus, de modo que as obras comprovem as palavras e as palavras expliquem os gestos (conforme nos ensina a Constituição Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, §2).


E os ouvintes quase justificam sua admiração: “Não é ele o carpinteiro, filho de Maria?” (v. 3). Diferente de Mt e Lc, Mc não alude ao pai de Jesus (“não é ele o filho do carpinteiro...?”). Isso não insinua uma teologia da concepção virginal, já que Mc principia seu Evangelho no batismo de Jesus e não traz os chamados “evangelhos de infância”, como Mt e Lc. Por outro lado, Mc diz que Jesus era um tékton. Não propriamente um “carpinteiro”, como os nossos de hoje, que fazem móveis de madeira. O tékton era uma espécie de jornadeiro, empreiteiro para todo tipo de trabalho manual. E, se Mc situa esse relato na terra de Jesus, em Nazaré, a admiração dos ouvintes da sinagoga é de fato justificada: muitos o conheciam, já tinham contratado seus serviços para consertar um telhado ou uma porta, conheciam-no bem e a sua família... É a mesma descrença que ainda encontramos diante dos anúncios do Reino que nos advém por pessoas demasiado próximas, de nossa intimidade. Um engano perigoso, pois é exatamente das situações mais cotidianas e, não raro, pelas pessoas mais próximas que o Reino se faz apelo mais urgente, contundente e comprometedor. Se ainda esperamos um Reino que nos venha totalmente de fora, do céu, ou que nos seja totalmente estranho, talvez ainda não tenhamos compreendido as palavras urgentes de Jesus: “o Reino de Deus chegou! Convertam-se a acreditem nessa boa notícia! (Mc 1,15)”.


Depois, o texto cita os tradicionalmente controversos “irmãos de Jesus” (v. 3): quatro homens e, pelo menos, duas mulheres. Deixando de lado a querela entre católicos e protestantes sobre esse ponto, que para muitos parece comprometer a virgindade de Maria, admitamos: é uma questão periférica, naquilo que se refere à Revelação e à Salvação. Apenas para esclarecimento, convém notar que o texto utiliza as palavras gregas adelfós e adelfaí, que se referem exclusivamente a irmãos de sangue. Outros são os termos gregos para “parentela”, “primos” e outros laços familiares, conforme encontramos nos Evangelhos (o próprio v. 4 deste capítulo; também em Mc 3,21; Mt 10,36; Lc 1,36.58.61; 2,44; 14,12). E citá-los ao lado da mãe de Jesus sugere exatamente que sejam irmãos de sangue, parentes de primeiro grau. Por outro lado, é possível constatar que a redação do Novo Testamento está situada espacial e temporalmente na transição do mundo judaico para o mundo grego. De modo que muitos termos gregos são traduções de conceitos hebraicos, utilizados em sentido hebraico. É assim, por exemplo, que Paulo utiliza os termos “carne”, “corpo”, “alma”, “espírito” – embora escreva em grego, mantém o sentido hebraico das expressões. E, se assim for o caso dos “irmãos” em Mc, é possível que se refira a outros parentes que não somente os irmãos de sangue, como ocorre em hebraico. De todo modo, ambas as ponderações respondem a algumas perguntas e levantam outras tantas. Mas são discussões que extrapolam nossos interesses aqui.


O versículo termina dizendo que os ouvintes ficaram “chocados” (ou “escandalizados”) com Jesus (v. 3). Não mais a “admiração” típica, mas escândalo que provém da falta de fé e da incompreensão daqueles que insistem em continuam “de fora”, mesmo sendo parentes e conterrâneos de Jesus. Ontem e hoje, a adesão tem pouco a ver com laços de sangue ou de afinidade. Jesus mostra-se consolado pelo exemplo dos profetas, raramente compreendidos pelos seus (v. 4). Sem a fé de seus conterrâneos, Jesus não realizou ali nenhuma das obras que tanta admiração tinham despertado inicialmente nos ouvintes (v. 5). Conforme nosso estudo 17, Jesus não exige a fé como condição ao anúncio do Reino. O Reino chegou e é dom oferecido a todos. Mas o Reino não é obrigatório a ninguém e Jesus não força ninguém a crer – apenas convida à conversão que a boa notícia exige. Mas, em Nazaré, nem a “fé–desejo” Jesus encontrou – aquela que conduzira a mulher hemorroíssa e, a partir do encontro com Jesus, despertara a “fé-adesão”. Pelo contrário, em sua terra Jesus encontrou a descrença–escândalo. E ele mesmo, agora, se escandaliza da falta de fé deles (v. 6). O que não impede que continue seu anúncio, nas cidades vizinhas.


O discipulado e destino de João Batista 


O texto seguinte é novamente construído em forma de uma grande inclusão, em que o relato inicial (A) é interrompido por outro (B) e novamente retomado no fim (A). Nesse caso, Mc narrará o envio dos discípulos (A), relatará o fim da vida de João Batista (B) e terminará contando a volta dos discípulos para o descanso, junto a Jesus (A). E, se nos lembrarmos que os textos intercalados guardam relações literárias e teológicas entre si, podemos ler: o destino de João Batista é o mesmo dos discípulos que permanecem fiéis ao Reino que anunciam, o que não significa que o Senhor os tenha abandonado. Aquele que nos chama e envia é fiel e, embora isso não nos isente das dificuldades e das perseguições inerentes ao anúncio que nos foi confiado, podemos sempre contar, no fundo das nossas aflições, com Aquele que permanece conosco: o Cristo Ressuscitado que nos enche com seu Espírito.


O envio (A)


Jesus chamou os Doze (já constituídos em Mc 3,13ss). Na “escola” de Jesus, é sempre o Mestre que chama seus discípulos. Quando eles sentem no coração o desejo e se aproximam de Jesus, no fundo já é o Espírito do Mestre que os despertou e encantou pelo Reino. E, conforme a proposta feita a eles no cap. 3, de “ficarem com ele” e depois “os enviar a pregar e expulsar os espíritos impuros”, agora Jesus os envia (v. 7). Eles têm, pois, a mesma “força” de Jesus: pregação do Reino e expulsão de tudo que se oponha a ele, os “espíritos impuros”. São legítimos discípulos do Mestre. E seguem-se as recomendações de Jesus a seus enviados, comuns aos três Evangelhos Sinóticos, com pequenas variações (v. 8-9). Em Mc, por exemplo, é permitido aos Doze levar cajado e usar sandálias – duas medidas de proteção. Em Mt e Lc, sequer isso lhes é concedido. O sustento dos missionários, porém, cabe àqueles que os recebem. Mais que a prática de Jesus e de seus discípulos, o texto revela os costumes das comunidades pós-pascais, que contavam com ministros itinerantes. Daí a recomendação de “permanecer na casa até partir” (v. 10), pois, ao tempo da redação de Mc, já devia ser comum que alguns missionários escolhessem as melhores casas para se hospedar, desprezando as mais humildes, ou ficassem de casa em casa, usufruindo daquilo que de melhor lhe fosse oferecido em cada uma.


Caso a mensagem do Reino não fosse recebida, Jesus recomenda deixar o lugar, “sacudindo a poeira dos pés em testemunho contra eles” (v. 11). Ou seja, demonstrando que os anunciadores não têm parte com aqueles que não os receberam; ou que os missionários não são responsáveis pela incredulidade deles. O conteúdo da pregação dos discípulos é o mesmo de Jesus: a conversão (v. 12; cf. Mc 1,15); e seus gestos também são similares aos do Mestre: a “expulsão dos demônios” (v. 13; cf., p. ex.: Mc 5,8; 9,25). A “unção com óleo”, mencionada logo em seguida, parecer ser uma prática tardia da comunidade cristã. Nos Evangelhos, não há relatos de Jesus ungindo com óleo ou recomendando fazê-lo – outro indício de que o texto reflete os costumes pós-pascais das comunidades.


A morte de João Batista (B) 


O “segredo messiânico”, não obstante os esforços de Jesus, começa a se romper. E isso ocorrerá, fatalmente, mas no tempo certo. Mas “o nome de Jesus” já se torna conhecido e chega a Herodes Antipas, tetrarca da Galileia (v. 14). Ele é filho de Herodes, o Grande, rei da Judeia, citado por Mt na infância de Jesus. Após a morte do pai, coube a Herodes Antipas o governo da Galileia e da Pereia. Junto à fama de Jesus, correm as comparações com João Batista, Elias ou “algum dos profetas que ressuscitou” (v. 14-15). Mc já antecipa aqui aquilo que “as pessoas dizem que Jesus é” num texto muito importante, que estudaremos a seu tempo (cf. Mc 8, 28). Entretanto, note-se desde já que a fé na ressurreição, ainda que não de modo consensual, já existia em Israel desde o retorno do Exílio da Babilônia.


Herodes vê em Jesus a imagem ressurreta de João Batista, que ele mesmo mandara matar (v. 16) por denunciar seu casamento com a cunhada Herodíades (v. 17-18). No relato de Mc (v. 19-29), a morte de João mistura a tirania covarde de um rei bêbado, a sensualidade néscia de uma moça ingênua e a maldade ardilosa de uma mulher magoada. Três figuras que, cada qual a seu modo, se opõem ao Reino. Paradoxalmente, um homem da estatura de João Batista padece sob uma trama tão vil. Do mesmo modo, também os discípulos de Jesus, portadores de tão boa notícia, devem estar prontos às tramas que se oporão ao Reino que eles anunciam. E a fidelidade em seu anúncio os conduzirá aos mesmos dilemas e, não raro, ao mesmo desfecho dramático de João Batista. Aderir à boa notícia de Jesus implica correr esse risco, em que a plenificação da vida pode passar, e quase sempre passa, pela morte.


O retorno a Jesus (A) 


Mas o Ressuscitado é Senhor. E é a ele que os discípulos de toda parte sempre voltam, contando o que fizeram e quanto ensinaram (v. 30). E o convite do Mestre, após as labutas da missão, é ao descanso de um lugar deserto (v. 31). De fato, o alimento da missão dos discípulos está em manter a intimidade com Jesus, que os envia. Sempre de novo, será necessário estar “no deserto, a sós com ele” (v. 32). E não há tirania ou morte capaz de abalar a serenidade e a paz daquele que, no exercício sofrido do anúncio do Reino, mantenha-se íntimo do Ressuscitado.


* * *


Seguir Jesus significa correr os mesmos riscos que ele enfrentou e venceu. Laços parentais ou de amizade não são garantia de compreensão e, frequentemente, são exatamente desses que encontramos maiores rejeições. Seguir Jesus, tornar-se um “de dentro”, implica ser incompreendido por aqueles que não o seguem, os “de fora”, sejam eles nossos conterrâneos ou familiares, sejam reis e poderosos de toda espécie – mesmo pretensamente religiosos. Mas as dificuldades do caminho não significam que Jesus nos tenha abandonado. Pelo contrário, refazendo o caminho dele, o encontraremos sempre e novo. E ele nos convidará, do fundo de nossas dificuldades, ao descanso, a sós com ele.