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6. Esaú e Jacó: Elogio à esperteza e à teimosia

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04.02.2014 | 25 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Acadêmicos
6. Esaú e Jacó: Elogio à esperteza e à teimosia

A história de Esaú e Jacó, tão antiga e tão conhecida na comunidade eclesial, será nosso chão adubado para semear a intriga necessária entre a esperteza e a ingenuidade, entre a teimosia fiel e a acomodação. A intriga entre as duas últimas emerge com menos complexidade, uma vez que os Evangelhos não cessam de condenar a preguiça e a acomodação, não poupando elogios e incentivos à perseverança ou teimosia inteligente. Contra a lei do menor esforço, temos a famosa frase do apocalipse de Marcos, que recomenda a perseverança em meio a toda adversidade, mesmo a preço da própria vida: “Aquele que perseverar até o fim será salvo!” (Mc 13,13). A segunda intriga não é tão fácil de abordar: esperteza e ingenuidade, ou vivacidade e honestidade, não se contrapõem de igual maneira. Todas as duas são virtudes e de tal modo importantes que aparecem recomendadas por Jesus na famosa frase dita a seus discípulos: “Sede prudentes (espertos) como as serpentes e simples (puros ou ingênuos ou mansos) como as pombas” (Mt 10,16b).


Esperteza: um perigo ou um dom?


Esperteza parece coisa de gente desonesta, de trapaceiros sem ética, pessoas sem escrúpulos que a todo custo fazem valer vantagens para si e para os seus. Nossa formação cristã não deu muito espaço para a sagacidade e a esperteza, tão presentes na Bíblia e tão elogiadas pelos escritos sagrados. A formação tradicional católica nos educou para ser ingênuos, fatalistas, conformistas até. Preparou-nos para uma sociedade cristã, homogênea, sem atropelos, onde a história segue seu curso como rio manso e calmo a desaguar no mar da eternidade. Na aventura da hegemonia católica, ela não nos educou para ser capciosos e sagazes, não nos preparou para enfrentar a vida moderna, muito menos a pós-moderna, e exaurir delas o que têm de melhor. Confrontados hoje com resquícios da sociedade moderna, que despreza os grandes relatos e valoriza as pequenas narrativas, e com a pós-moderna, que tanto valoriza o pluralismo e nos assedia de todos os lados, nós cristãos nos percebemos por vezes sem chão, sem armas para enfrentar a esperteza e a rapidez das novas sociedades. Parece que nos foi tirada nossa segurança; sentimo-nos como cegos em tiroteio: despreparados para viver dispersos no mundo secularizado. Como sobreviver em meio a esse mundo nada harmônico, nada lógico, convivendo com realidades tão distintas? Como não perder nossa identidade cristã no convívio com tantos povos, tantas crenças, tantas religiões, tantas informações e valores tão distintos? Como firmar nossa identidade cristã? Só com muita sagacidade e esperteza, sem neuroses, sem medo do mundo, sem melancolia do passado, mas com uma boa dose de teimosia... Na trilha da esperteza e da teimosia, tomemos como modelo o relato de Esaú e Jacó.


Conhecendo o contexto do relato


A história de Esaú e Jacó se encontra no Livro do Gênesis, dos capítulos 25,19 a 36,43. É um relato expressivo, em tamanho e em riqueza teológica. Se nós considerarmos que Gn 1–11 tem outro gênero literário e não pode ser lido com o mesmo olhar que o restante desse livro, então o ciclo de Esaú e Jacó ocupa o centro do relato dos patriarcas, que vai de Gn 12 a 50. Existe um antes de Esaú e Jacó (Gn 12,1–25,18), que relata a saga de Abraão e de seu filho Isaac, e um depois de Esaú e Jacó (Gn 37,1–50,26), que relata a história de José e de seus irmãos em Canaã e no Egito. A centralidade do texto no conjunto do livro aponta para a centralidade dos personagens Esaú e Jacó na história de Israel. Aliás, Israel, aquele cujo nome o povo carrega e que literalmente significa “o homem que viu Deus”, é o mesmo personagem Jacó (cujo significado é calcanhar), que muda de nome depois de enfrentar o anjo do Senhor num embate muito interessante: um relato com requintes de criatividade que aparece em Gn 32,22-33. Israel passa a ser entendido como “o homem que lutou com Deus”.


O livro do Gênesis, apesar de recolher textos de tempos bem mais remotos, ganha forma com a Tradição Sacerdotal, no Exílio e Pós-exílio. O Exílio na Babilônia fora uma dura, mas rica experiência. Levados de sua terra natal por Nabucodonosor em 597 aC, o povo hebreu aprendera a sobreviver em tempos adversos, na diáspora. Quando estavam dispersos na Babilônia, entre as mais diversas crenças e culturas, foi preciso ficar esperto. Tornou-se uma questão de sobrevivência ter sagacidade para defender sua identidade e não se perder no meio de um povo estranho. A passagem pela Babilônia fora uma escola importante: em vez de ficar chorando de saudade da vida em Jerusalém (do templo, do culto, dos costumes judaicos, etc) como lembra o salmo 137, era preciso usar de sagacidade, de esperteza, para manter a identidade judaica e salvar a fé monoteísta ameaçada pelo contato com os cultos sedutores das religiões estrangeiras. Aliás, conselho muito sábio dado por Jeremias em sua Carta aos Exilados (cf. Jr 29,1-28). Nada de depressão, nada de melancolia. Desistir, nem pensar! É preciso aguardar com paciência e viver com esperteza, guardando munição para a hora certa de agir. É nesse contexto que nasce o relato de Esaú e Jacó. Tempo em que ser sagaz, esperto, teimoso e perseverante é condição primordial para sobreviver e ser fiel ao Senhor.


O autor dos relatos do ciclo Esaú e Jacó revela uma genialidade e uma capacidade narrativa que impressionam. Ele elabora um texto teológico, cuja finalidade é transmitir às gerações vindouras a experiência de Deus feita por sua comunidade de fé, motivando-a à mesma fidelidade e teimosia experimentadas na caminhada com Deus. Para isso, usa uma antiga arte presente na humanidade: a contação de histórias. Para falar de suas origens como povo que pertence ao Senhor, de sua perseverança na fé, de sua luta contra tudo e contra todos para se manter monoteísta, o autor conta histórias. Histórias cheias de detalhes, de recursos de linguagem, de imaginação, de criatividade; histórias que demonstram a capacidade literária do autor e ainda mais sua sensibilidade para o belo e o inusitado. Ao relatar a fidelidade de seu antigo pai Jacó, suas pelejas e conquistas, permeadas de atropelos e sofrimentos mil, o autor aproveita também para explicar antigas inimizades entre o povo israelita e seu vizinho – os edomitas (povo descendente de Esaú – cf. Gn 25,19-26), alguns costumes alimentares (como não comer o nervo da coxa dos animais – cf. Gn 32,23-33), o antigo costume entre os judeus de não se casarem com pessoas de outro povo (cf. Gn 26,34-35; 28,1-9), a origem do nome de lugares (como Betel, casa de Deus – cf. Gn 28,10-22; Fanuel, face de Deus – cf. Gn 32,31; Sucot, as tendas – cf. Gn 32,17), de cidades (Bersabéia, abundância – cf. Gn 26,32-33) ou de poços (como Esec, desafio; Sitna, inimizade; Reobot, espaço – cf. Gn 26,17-24) etc. São etiologias: relatos que explicam a origem de nomes de lugares ou de algum costume, etc.


Uma saga de trapaças


a) Tudo começa no ventre da mãe


A interessante saga de trapaças que o livro do Gênesis relata começa como deve ser entre os judeus: a árvore genealógica cuja raiz é Abraão, o pai da fé (cf. Gn 25,19-21). A genealogia de forma descendente, bem ao modo judaico, conta que Abrão gerou Isaac, de Sara. E Isaac gerou Esaú e Jacó, de Rebeca. Mas a confusão entre esses dois irmãos é mesmo antiga: “os meninos se chocavam no ventre materno” (Gn 25,22). E Rebeca, indignada com aquele fuzuê na sua barriga, foi reclamar com o Senhor que lhe disse: “Duas nações trazes no ventre; em tuas entranhas, dois povos se dividirão. Um povo será mais forte que o outro, e o mais velho servirá ao mais novo” (Gn 25,23). Palavra bastante inusitada: o mais velho servir ao mais novo. Fica evidenciada uma inesperada troca de valores e o leitor já começa avisado de que a história que ele vai encontrar daí para frente não é nada linear: tem muita surpresa pela frente. Quanta imaginação, quanta beleza! Na linguagem simbólica das crianças brigando no ventre, o autor mostra a determinação de Israel, sua capacidade de luta, e explica a antiga rixa entre os povos israelita e edomita. É a força da literatura. Ele certamente perde em precisão – que teria com uma linguagem mais técnica, positiva, estilo relato biográfico –, mas ganha em significado. É a força do símbolo, da metáfora que perpassa todo o texto.


E dito e feito! “Quando chegou o tempo de dar à luz, Rebeca tinha gêmeos no ventre”. O primeiro saiu todo vermelho – ruivo, peludo como um manto de pele, e foi chamado Esaú (que quer dizer veludo ou vermelho). Depois saiu o irmão, segurando com a mão o calcanhar de Esaú. Notem a sutileza dos detalhes! E este foi chamado Jacó (que quer dizer calcanhar, tomando então o sentido de suplantador, aquele que passa o outro para trás, que pega no calcanhar do outro). Com uma dose extraordinária de humor, o autor antecipa o que vai se dar logo à frente: Jacó pega no pé de seu irmão até conseguir o que quer. Já está dita aqui a determinação de Jacó que vai aparecer ao longo de todo o relato.


b) A primeira grande trapaça: vender o direito de primogenitura


E, quando os meninos cresceram, a inimizade não se desfez: o mais velho era homem rude, caçador, vivia correndo pelo mato atrás de caça, era o preferido do pai; o mais novo, caseiro (habitava em tendas), pacífico, era o queridinho da mamãe (cf. Gn 25,27-28). Até que certo dia, Esaú chegou da caça, sem nada na mão. Seu esforço havia sido inútil; afinal um dia é da caça, outro do caçador. Que azar! Esse dia era mesmo da caça. Esaú estava morto de fome e seu irmão Jacó havia preparado um prato de lentilhas. Ele disse a seu irmão: “Dá-me desse negócio que você fez aí”. O suplantador não perdeu tempo. Pensou: “É hora! Conheço meu irmão. Ele é primário, inconstante, irresponsável... Vai ser agora que eu consigo a primogenitura!” E disse: “Tudo bem! Minha sopa em troca do direito de primogenitura!”. E o irmão fechou negócio, sem pensar duas vezes, vendeu o direito de primogenitura, desdenhou o dom recebido, dizendo: “Estou morrendo de fome. De que me serve o direito de primogenitura, se ele não enche barriga?”. Jacó nem acreditou e perguntou de novo: “Jura?”. E Esaú jurou e vendeu o direito de primogenitura. Ficou selado o acordo. Jacó ficou tão feliz que deu a Esaú pão para acompanhar a sopa. “Havia sido um belo negócio!”, pensou ele satisfeito. Esaú comeu, bebeu e foi-se embora como se nada de grave tivesse acontecido. Mas o autor adverte: “Esaú desprezou assim seu direito de primogenitura” (cf. 25,27-34).


Vender o direito de primogenitura desponta no cenário bíblico não só como grande tolice, mas como a maior de todas as trapaças. Vender o direito de primogenitura é vender algo que não lhe pertence, já que esse direito diz respeito à liderança de todo o clã e não só ao primogênito. Não é só irresponsabilidade; é tirar proveito de um bem que não é só seu. É corromper-se, é vender-se, é trapacear toda a sua gente, passá-la para trás, desdenhar seu pai e sua mãe que nele confiam e dele esperam correspondência ao dom recebido. E mais, é tentar trapacear Deus, de quem vem esse direito e que é quem abençoa o primogênito. E tudo por um prato de sopa! Mas a burrada já estava feita e ele nem desconfiou disso, tamanha sua lerdeza.


Esaú segue seu percurso, tomando uma decisão precipitada atrás da outra, provando sua inabilidade para a liderança do clã e sua incapacidade de acolher o dom da primogenitura. A próxima bobagem que ele faz é casar-se com mulheres gentias. Isso vai causar sérios aborrecimentos aos seus pais (Gn 26,34-35). Parece que esse Esaú não é mesmo confiável. Não está nem aí para as leis de sua gente, para os costumes e valores de seu povo.


c) Driblando o destino com muita esperteza


E chega o tempo em que Isaac fica velho e quase cego. Parece que o patriarca envelhece sem enxergar o que seu filho havia feito. Ignora as atitudes impensadas de Esaú ou não quer enxergá-las, afinal ele é o queridinho do papai. Sabendo que a morte se aproxima, Isaac decide abençoar logo seu filho mais velho e morrer em paz. Antes, porém, queria comer uma bela caça preparada por ele. E chama Esaú para lhe dizer suas intenções. Esaú se faz de bobo; parece não se recordar daquele dia em que trocou o direito de primogenitura por um prato de lentilhas. O Vermelho toma o lugar do Suplantador. Esquece seu juramento e, antes que alguém se lembre do episódio passado, corre ao campo à procura de uma caça. Era preciso ficar esperto, afinal seus interesses estavam em jogo.


Mas sua corrida foi em vão. Enquanto Esaú corre no campo atrás de caça, Rebeca, que havia escutado o que Isaac dissera a seu filho mais velho, vai suplantar o verdadeiro Suplantador. E, deixando fluir toda a astúcia feminina, planeja um golpe perfeito para fazer valer os direitos de seu filho querido. Ela, que havia dado à luz Esaú como primogênito, vai dar à luz um plano engenhoso, no qual Jacó sairá com a primogenitura. “É preciso retificar os enganos da natureza”, pensa Rebeca. Se a vida não colabora, então, a regra é dar uma forcinha. A matriarca chama Jacó e manda-o buscar dois cabritos gordos para preparar o assado para o velho Isaac. Jacó deverá passar-se por Esaú e receber a bênção da primogenitura dada por seu pai.


Jacó teve medo. Vacilou. Ficou vermelho de medo e de vergonha só em pensar na trapaça. Só pode ser ironia, pois seu nome – Suplantador – parece não lhe cair bem nessa hora. Ele sabe que o plano é perigoso e arriscado. Sabe dos riscos que corre. Se seu pai descobre, ele estará perdido: em vez de bênçãos atrairá maldições sobre si. Jacó se revela responsável e sério demais para quem carrega esse nome; ele tem brios na cara e cora-se de temor. Mas a mãe está determinada. Arrisca, inclusive, a atrair as maldições para si no lugar do filho. Nenhuma maldição, porém, deve ser pior que ver seu povo sujeito às irresponsabilidades de Esaú. Está valendo tudo nessa hora para dar um empurrãozinho na sorte.


E Jacó obedeceu a sua mãe. Correu ao pasto, pegou os cabritos. Rebeca preparou uma bela refeição para seu marido. Depois, tomou as melhores vestes de Esaú e vestiu-as em Jacó. Com as peles dos cabritos, cobriu-lhe as mãos e a parte lisa do pescoço. Pôs nas mãos do filho mais novo o assado e o pão que havia preparado. E Jacó os levou ao seu pai. E, como num filme de suspense, só restava torcer e esperar para ver o resultado. Jacó agora teria que honrar seu nome. Teria que provar que é esperto e inteligente o suficiente para assumir a liderança de sua gente. Teria que provar que os valores de seu povo são importantes para ele a ponto de arriscar a própria pele nessa causa. Teria que fazer o jogo da trapaça de forma perfeita. Ingenuidade e escrúpulos não resolvem nada nessa hora. Garra e determinação contam mais que falsos escrúpulos. E lá vai ele entrando no quarto de seu pai, disposto a suplantar seu irmão.


Chegando com o jantar ao aposento de seu pai, Jacó disse: “Meu pai!”. E o pai logo respondeu: “Quem és, meu filho?”. “Sou eu, Esaú, teu filho primogênito. Fiz como me mandaste. Levanta-te, come de minha caça, para me abençoares”. O pai estava velho, mas não era burro. Estranhou: “Meu filho, como conseguiste achar uma caça tão depressa?”. E ele respondeu: “O Senhor Deus me deu sorte!”. E Isaac chama Jacó até ele, apalpa-o, verifica se suas mãos são mesmo peludas e diz: “A voz é de Jacó, mas as mãos são de Esaú”. E, depois de comer, decide abençoar seu filho. Chama-o de novo junto a si para beijá-lo e, sentindo o cheiro de suas roupas, abençoou-o: “Este é o cheiro do meu filho: é como o aroma de um campo que o Senhor abençoou! Que o Senhor te conceda o orvalho do céu e a fertilidade da terra, trigo e vinho em abundância. Que os povos te sirvam e as nações se prostrem diante de ti; sê o senhor de teus irmãos, e diante de ti inclinem-se os filhos de tua mãe”. Ufa! Que alívio! O plano havia dado certo: Jacó podia respirar em paz. Havia conseguido a preço de muita esperteza a bênção da primogenitura.


d) Deus abençoa o espertalhão?


Daí para frente é só confusão, mas nada que possa desfazer a força da bênção pronunciada. Esaú chega e descobre a trapaça. Nem assim cai na real. Nem assim reconhece que havia vendido seus direitos. E culpa seu irmão de trapacear com ele duas vezes: “Primeiro me tirou a primogenitura, e agora usurpou minha bênção. Ele é mesmo um suplantador, conforme diz seu nome”, grita Esaú. Até parece que não foi Esaú quem vendeu a bênção, e que a bênção do primogênito não está atrelada ao direito de primogenitura. De novo o verdadeiro suplantador se esquiva da culpa e procura um jeito de se fazer de vítima para virar o jogo.


Cheio de cólera, Esaú vai perseguir seu irmão. Mas, muito esperta, Rebeca despacha seu filho para terras bem distantes e manda que procure uma esposa entre sua parentela. Jacó parte para as terras de Labão, seu tio. Depois de uma boa caminhada, Jacó resolve descansar da labuta. Parou quando o sol se pôs e ajeitou uma pedra como travesseiro para dormir. E teve um sonho nada corriqueiro: “Viu uma escada apoiada no chão e com a outra ponta tocava o céu. Por ela subiam e desciam os anjos de Deus. No alto da escada estava o Senhor que lhe dizia: Eu sou o Senhor, Deus de teu pai Abraão, o Deus de Isaac. A ti e à tua descendência darei a terra em que estás dormindo. Tua descendência será como a poeira da terra. Tu te expandirás para o ocidente e para o oriente, para o norte e para o sul. Em ti e em tua descendência serão abençoadas todas as famílias. Eu estou contigo e te guardarei aonde quer que vás, e te reconduzirei a esta terra. Nunca te abandonarei até cumprir o que te prometi” (Gn 28, 13-15).


Para o leitor da Escritura, já acostumado com a ação divina por meio de sonhos, essa manifestação não surpreende tanto. Deus tem mesmo a mania de fazer e acontecer quando os personagens dormem. Enquanto Adão dorme, Deus cria sua companheira. José do Egito dorme e tem um elenco sem fim de sonhos inusitados. O faraó sonha para José ter que interpretar. O profeta Joel afirma que no final dos tempos os jovens terão sonhos e os velhos, visões. No NT, o anjo aparece a José em sonhos, os magos são avisados por Deus em sonho que não devem dar satisfações para o rei Herodes de onde está o menino Jesus, etc. É assim mesmo: enquanto o ser humano dorme, Deus age. Fica bem mais fácil assim; não tem ninguém para o atrapalhar na sua ação salvífica. O autor, já habituado a esse recurso literário, entende que é preciso colocar Jacó para dormir. Deus quer agir.


Se a ação de Deus por meio do sonho não surpreende o leitor da Escritura, no entanto, uma surpresa está reservada para o relato do sonho em Betel: Deus, o Senhor, confirma a Jacó a bênção recebida de seu pai Isaac. Deus aprova a trapaça de Jacó e de Rebeca e confirma sua presença junto do espertalhão, dando-lhe inclusive garantias de sua presença ao longo do caminho. Pode ser que por essa o leitor não esperasse. E o mais surpreendente: a bênção de Deus dada a Jacó tem muita semelhança com as promessas feitas a Abraão, o pai da fé: possuir a terra em herança, ser um grande povo como a poeira da terra, ter as famílias abençoadas por seu intermédio, ter a garantia da companhia e proteção do Senhor, ser reconduzido à terra (cf. Gn 12,2-3; 13,14-1; 15,5-7).


e) Esperteza e teimosia: antídotos contra trapaças


Mas nem tudo vão ser flores. Para quem é trapaceador, um monte de trapaças o espera. Vamos ver se ele é mesmo esperto e decidido a ponto de vencer mais esses desafios que se apresentam. Jacó vai chegar em terras de Labão e conhecer sua prima Raquel por quem vai se apaixonar por causa de seus lindos olhos. Por ela vai trabalhar sete anos. Mas lá vem Labão para suplantar Jacó, passá-lo para trás. No dia do casamento, em vez de Raquel, Labão lhe dá Lia – a filha mais velha, dos olhos remelentos – como esposa. Lia é introduzida no quarto das núpcias e, sem que Jacó se aperceba da troca, desposa a sua cunhada. O golpe só é descoberto à luz do dia. Querendo satisfações do grande feito de seu sogro, Jacó pede explicações. Mas Labão se safa dizendo que entre eles não se dá filha mais nova em casamento antes que a mais velha seja desposada. Essa história de trapaças parece mesmo não ter mais fim. Mas tudo bem! Jacó é homem que sabe o que quer: quer a primogenitura e luta por ela; quer Raquel e por ela faz qualquer coisa. Aceita a proposta de Labão e trabalha para seu sogro mais sete anos no intuito de receber Raquel como esposa. E assim se fez. Jacó desposará ainda duas escravas, uma de Lia e uma de Raquel, e com elas terá 12 filhos. Até que chega o dia de acertar as contas com o sogro, juntar sua família e voltar para Canaã.


Decidido a voltar para Canaã, Jacó combina um preço pelos serviços prestados ao sogro. Depois de tanta peleja, não pode voltar de mãos abanando. E, de novo, trapaças. Labão combina o salário com Jacó: os animais malhados e listrados de seu rebanho. Mas trapaceia de novo. E, na sua esperteza, Jacó dá um jeito. Nada nem ninguém podem com Jacó, pois Deus está com ele, favorecendo. Parece que Deus gosta de sua esperteza e teimosia. E só nasciam animais malhados e listrados. E não havia trapaça de Labão capaz de impedir que Jacó tivesse sucesso. Jacó ajunta sua família, seus escravos e seu rebanho e volta para Canaã, terra de seus pais.


f) Deus: adversário ou parceiro no caminho?


Na volta para Canaã, Jacó receia encontrar seu irmão ainda pesado pelo rancor e pela cólera. “Como será recebido por seu irmão Esaú? – pensou ele – como instalar-se de novo na terra de seus pais, depois de tanto tempo distante?” E Jacó se vê obrigado a achar uma solução para o impasse. Quem sabe se ele mandasse alguns servos à sua frente, com alguns presentes para seu irmão, a ira de Esaú não se abrandaria? Cheio de sagacidade e esperteza, Israel entende que enfrentar o inimigo de peito aberto não denota inteligência nem força. O retorno à sua terra de origem pode ser mais complicado do que parece. Então, manda que seus servos tomem animais e outros bens para ofertar a seu irmão. Jacó envia-os à frente de sua comitiva. Era preciso mostrar boas intenções com Esaú, com quem tinha deixado muitas questões pendentes no passado. E assim fez. E ele e sua família ficaram para trás acampados, esperando a notícia de seus enviados.


Enquanto aguarda a bandeira de paz de seu antigo adversário, um estranho adversário aparece no caminho. Se a viagem de fuga para as terras de Labão proporcionou a Jacó o inusitado encontro com o Deus de seus pais, a viagem de volta não vai ser muito diferente. Nova surpresa (cf. Gn 32,23-33): nova bênção de Deus, dessa vez, uma bênção forçada. Jacó luta a noite toda contra um anjo, ou seja, contra Deus mesmo. Mas este não consegue vencê-lo. Isso vai lhe valer uma mudança de nome: Israel, “aquele que luta contra Deus”. Jacó já tinha enfrentado lutas terríveis: seu irmão Esaú, seu sogro Labão; lutara contra a natureza para ser o primogênito, contra os costumes para ser o líder do clã. Só faltava lutar com Deus. Era hora de enfrentá-lo. No enfrentamento noturno, antes que o dia amanhecesse e ficasse revelada a identidade de seu novo adversário,; Jacó faz Deus ceder e abençoá-lo. Ele fez cansar até Deus. Jacó não desiste. Sabe o que quer. Ele é símbolo do Israel sofredor, que enfrenta batalhas, barreiras, perseguições, sofrimentos mil, mas não desiste de sua caminhada de fé.


g) Hora de recomeçar


De volta para sua terra natal, Jacó não é mais o mesmo de antes. Agora, mais curtido pela vida e mais experimentado pela dor, Jacó é Israel, o homem que viu Deus. Ao encontrar Esaú, os servos lhe oferecem presentes em nome do patrão e lhe relatam suas boas intenções. Já havia passado muito tempo: Esaú se instalara naquelas bandas e já não recordava mais de tanta trapaça. Ele, depois de insistente pedido de Jacó, aceita os presentes de seu irmão e, de novo, a questão polêmica é resolvida com pequenos agrados, como no tempo do prato de lentilhas. Jacó tornou-se Israel, ficou mais forte e mais determinado com o passar dos anos. Esaú parece continuar o mesmo: nada de novo, seu nome é o mesmo, sua vida é a mesma.


Jacó se estabelece em Canaã e daí só vai partir quando, depois de tempos de penúria por causa de grande seca, ruma com sua família para o Egito à procura de alimentos. Fim do ciclo de Jacó.


Conclusão: Amei Jacó e odiei Esaú ou amei Esaú e odiei Jacó?


Na leitura cotidiana dos relatos da Escritura, não é incomum encontrar quem odeie Jacó e defenda Esaú como a vítima trapaceada. Bem diferente do que diz Deus por meio do profeta Malaquias: “Amei Jacó e odiei Esaú” (Ml 1,2-3). Mesmo levando em consideração a delicadeza necessária na interpretação dessa antítese, amar um e odiar outro, presente em Malaquias, ressoa extravagante aos nossos ouvidos, mais uma vez, a Escritura elogiar Jacó como o queridinho de Deus, enquanto que Esaú parece menos digno de consideração. Depois de tantas espertezas, quem diria?


Tudo começa com o corriqueiro e equivocado conceito de inspiração que faz parte do senso comum. Compreender inspiração como ditado de Deus não nos permite ler os relatos da Escritura como literatura, cheia de detalhes, ironias, sarcasmos, gozações... Com isso, perdemos o melhor da piada: o tom do humorista. Nosso pietismo religioso e nossa vertente quase cátara do cristianismo não nos permitem espertezas. É preciso ser um santo tolo e ingênuo, um santo fraco e frouxo, que se deixa trapacear e se põe a chorar pelo leite derramado, como se fosse uma vítima da sorte, um grande azarão com quem a vida e Deus não contribuíram. Bem disse Mateus, em sua constrangedora parábola do administrador infiel, que “os filhos do século são mais espertos que os filhos da luz!”. Enquanto os fracos choram a sorte, os fortes lutam por aquilo em que acreditam e mudam os rumos da história. Foi bem assim com Jacó e com o povo de Israel, que desde cedo se reconheceu em Jacó, o verdadeiro filho primogênito de Deus. O povo de Israel não tem dúvidas. Jacó tem brios na cara – é vermelho de vergonha – e Esaú é o verdadeiro suplantador. Os nomes equivocados apresentados pelo autor aos respectivos personagens revelam mais uma vez sua genialidade e capacidade narrativa. O ciclo de Jacó é um relato teológico perfeitamente desenvolvido dentro de categorias literárias fascinantes. Por meio de tramas da escrita, a experiência de Deus que o povo judeu faz ao longo do tempo se torna narrativa, Escritura, e as novas gerações aprendem a percorrer os caminhos dos antepassados. Deus irrompe na história e, na força da literatura, se revela, deixando clara a experiência de fé de seu povo.


A todos que hoje refletem conosco sobre a narrativa de Esaú e Jacó, desejo a esperteza e a teimosia de Jacó para seguirem em frente driblando os atropelos da vida e para prosseguirem sua caminhada na fidelidade ao Deus da vida.