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46. A ignorância da fé e a idolatria eucarística e religiosa em nossos tempos

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11.05.2020 | 7 minutos de leitura
Felipe Magalhães Francisco
Diversos
46. A ignorância da fé e a idolatria eucarística e religiosa em nossos tempos


Ritos pietistas, travestidos de 'adoração',

acabam por fazer um desserviço à piedade eucarística



“Um povo que não tem entendimento caminha para a perdição” (Os 4,14). Essa asseveração do profeta Oseias não pode ser por nós ignorada. Pela boca do profeta, Deus anuncia que seu “povo será destruído por falta de conhecimento” (4,6): ele cairá em ruína, porque, imerso em ignorância, não é capaz de bem discernir nada, tampouco a própria fé. E o peso maior, desse juízo que o profeta faz, recai sobre as lideranças religiosas que tinham – e têm! – o papel de não permitir que o povo permanecesse em pecado, fruto desse desconhecimento daquilo que é, por exigência da fé, uma necessidade de se conhecer: “eles se alimentam dos pecados do meu povo e anseiam por sua falta” (Os 4,8).


Ora, essa última constatação, feita pelo profeta oito séculos antes do nascimento de Cristo, qualquer estudioso de sociologia da religião ou pastoralista pode ainda hoje constatar: o conhecimento de alguns, que deveria ser um serviço para todos, torna-se forma de manutenção do poder, quando não colocado como maneira de ajudar que as pessoas saiam da ignorância. Essa é uma das razões pelas quais a catequese patina, ano após ano, sem se tornar, na maioria exorbitante dos casos, educação da e para a fé. O que deveria, pois, ser um ecoar da fé – significado da palavra catequese! – torna-se propagação de doutrinas que, do modo como chegam aos fiéis, são vazias de significado e se tornam conteúdos frios, nos quais se veem obrigados a acreditar, mesmo que não compreendam.


Enquanto a inteligência da fé – capacidade de ler desde dentro – fica restrita a alguns poucos e privilegiados círculos, uma grande turba mal iniciada na própria fé, propaga, na melhor das intenções de bem servir à comunidade, uma religiosidade carente de solidez e profundidade, que só sabe repetir parágrafos de catecismos. Com isso, popularmente ouvimos pela fala de muitos, cria-se a falsa ilusão de que quem se debruça sobre a Teologia, torna-se insensível à fé, ou até mesmo incrédulo, porque insiste em passar pelo crivo da razão os conteúdos de fé que professa. Esse engodo é reiteradamente repetido, por aqueles e aquelas que acabaram por se tornar manipulados por lideranças religiosas que, tal como denunciava o profeta Oseias, beneficiam-se da falta de conhecimento de seus liderados. “São ovelhas que não têm pastor”, diria Jesus (cf. Mt 9,36).


Não sem motivos, os documentos que resultam das Conferências do Episcopado Latino-americano e caribenho, desde Medellín (1968), insistem na perspectiva de que é preciso evangelizar os já batizados ou, numa linguagem mais atual, investir no contínuo e permanente processo de iniciação à fé dos cristãos e cristãs católicos. Aos que, tal como Paulo, têm a consciência do dever responsável da missão irrenunciável de evangelizar – “ai de mim se eu não pregar o Evangelho!” (1Cor 9,16) –, a urgência de insistir em processos cada vez mais legítimos e profundos de educação da e para a fé é interpeladora.


Muitas vezes, essa urgência se faz angustiante, visto que, enquanto éramos para estar discutindo a maneira como a missão evangelizadora pode chegar às fronteiras próprias de nossos tempos, temos que investir energia em discorrer sobre o bê-á-bá da fé com aqueles e aquelas que já fazem parte da comunidade eclesial, pois: “[...] uma vez que com o tempos vós deveríeis ter-vos tornado mestres, necessitais novamente que se vos ensinem os primeiros rudimentos dos oráculos de Deus, e precisais de leite, e não de alimento sólido” (Hb 5,12).


Chegados até aqui, após termos refletido acerca do grande problema – e de algum modo, do fracasso – que a ignorância da fé traz para a existência do cristianismo, podemos constatar que esse desconhecimento de elementos básicos que compõem a semântica da fé, conduz à idolatria, tal como discorríamos desde nosso último artigo-catequese. Alguns leitores e leitoras, de um lado, interpelados pela reflexão que trazíamos, começaram a manifestar o espanto diante da constatação de que é possível idolatrar a eucaristia, já que ela é presença real de Cristo, confessado por nós cristãos e cristãs como Filho de Deus. Outros leitores e leitoras, de outro, movidos por uma leitura um tanto quanto apaixonada e carente de atenção, não alcançaram o foco da questão refletida. Isso nos leva à importância evangélica de que voltemos ao assunto, pois.


Para destacar o significado do que seja a idolatria, recorremos a uma máxima: tudo é relativo; só Deus é absoluto. “Relativo” é tudo aquilo que carece de uma relação para existir ou ser, isto é, quando algo para existir ou ser necessita de outro algo. Pela fé cristã, compreendemos que tudo o que existe e é, necessita de algo ou de alguém, com exceção de Deus, que justamente é por nós confessado como Criador (de modo que, obviamente, toda criatura é não absoluta, porque dependente!). Isso nos leva, pois, à significação do que seja “absoluto”: o que é acabado, completo em si e por si mesmo; o que não depende de relação para ser ou existir. Dizer que Deus é absoluto, que não depende de relação alguma para ser, não significa ignorar aquilo que apreendemos por sua própria revelação, de que nos criou, por puro amor, para que façamos comunhão com ele.


Ora, dito isso, podemos concluir que cometemos e fazemos idolatria, todas as vezes que tiramos qualquer realidade existente de seu justo lugar relacional, mesmo as coisas e realidades sagradas. Absolutizar, isto é, separar uma existência ou realidade relacional de todas as relações e interdependências que são, para essa existência ou realidade, necessárias, é criar ídolo e, tão logo, fazer idolatria. E isso é passível que façamos com o Corpo e o Sangue de Cristo eucaristizados, por exemplo. Isso, porque a presença real de Cristo na eucaristia não se dá sem mais, de forma absoluta, bruta: essa presença real pressupõe a ação do Espírito Santo, que santifica os elementos do pão e do vinho; pressupõe a fé da comunidade, com seu grande “amém”, após a prece eucarística; pressupõe a Palavra Deus, que é a própria pessoa de Jesus Cristo, que torna possível toda e qualquer realidade sacramental... Atribuir, destarte, à hóstia consagrada um fim em si mesma, só porque cremos que ela contenha a presença real de Cristo, é absolutizá-la e, por isso, idolatrá-la, mesmo que ela seja, de fato, o Corpo de Cristo sacramentado.


 Não se pode apressar em concluir, com isso, que, com essas considerações feitas acima, afirmamos que a piedade da adoração ao Santíssimo Sacramento seja equiparada por nós à idolatria, ou que ignoremos a presença real de Cristo. Não! Mas é preciso destacar: essa adoração que fazemos ao Corpo de Cristo na espécie consagrada, tem critérios teológicos e rituais e que, por isso, há um ritual próprio que cuida para que exageros, idolatrias, vilipêndios e, inclusive a fetichização, não aconteçam. Mais: esse ritual cuida para que a verdadeira adoração, com possibilidades de que frutos espirituais sejam colhidos, para bem da comunidade e dos cristãos e cristãs pessoalmente, aconteça. Infelizmente, o ritual A sagrada Comunhão e o culto eucarístico fora da Missa é desconhecido por muitos que se aventuram em promover ritos pietistas, travestidos de “adoração”, e acabam por fazer um desserviço à piedade eucarística, desdobrando, mais das vezes, em mero espetáculo que atiça a sensibilidade de muitos e muitas de modo subjetivista, e que em nada refletem o memorial da Ceia do Senhor.