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23. Eu e minha família

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04.01.2018 | 7 minutos de leitura
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Casos da vida
23. Eu e minha família

Eu sempre achei a família a coisa mais bonita do mundo e o maior tesouro que alguém pode possuir. Quando criança, sonhava com uma família perfeita, e queria a todo custo que minha história fosse outra. Queria ter nascido numa família tradicional, com papai, mamãe e um ou dois irmãos. Mas não é bem assim a minha história.


Eu sou o sétimo irmão de uma família biológica bem complicada. Minha mãe biológica era prostituta e eu e meus irmãos somos filhos de pais diferentes. Quando eu tinha apenas sete meses, minha mãe bebeu, saiu pra vida e deixou os sete filhos sozinhos em casa. Ficou 24 horas fora e esqueceu-se que tinha uma família pra cuidar. Ficamos os sete filhos largados, com fome e sem banho, esquecidos mais uma vez numa casinha velha abandonada num canto da rua.


Por acaso, passava por ali uma boa mulher, D. Judite. Ela era casada e não tinha filhos. Era engajada na pastoral da criança de sua paróquia; e seu marido, Aníbal, era ministro da eucaristia. Ambos tinham bom coração e sonhavam com um mundo mais justo e fraterno para todos. Foi nesse dia, que eu renasci. D. Judite ouviu ao longe o choro de uma criança quando subiu para rezar o terço na casa das amigas. O choro insistente e quase apagado a incomodou. Foi, rezou e, quando voltou, a criança ainda chorava. Era eu, abandonado, com fome e sujo, pedindo socorro.


Judite parou em frente a casa, gritou, bateu, chamou e nada. Empurrou a porta e entrou. Viu sete crianças sujas e famintas pelos cantos da casa, sem nenhum adulto para cuidar; o menor era bebê; o maior não tinha mais que dez anos. Pegou os sete, levou para a delegacia, deu queixa e, depois das legalidades resolvidas, levou seis deles para sua casa; eu fui internado, tal a fraqueza em que me encontrava. Naquele dia, D. Judite se tornou mãe de sete filhos ao mesmo tempo e nós renascemos para a vida. Foi aí que conhecemos um lar.


Passados quatro anos, seu Aníbal ficou desempregado e a lojinha de D. Judite não andava muito bem. Veio uma dura crise sobre a família e, depois de muito pensar, o casal resolver deixar os meninos no orfanato e ficar apenas com as duas meninas em casa. Mas D. Judite não desanimou de ser mãe de todos eles. Continuava visitando-nos no abrigo e sendo presença em nossas vidas.


No orfanato, a vida era dura. Sofri de novo o abandono. Não entendi porque fui separado d meus pais. Consolava-me estar ainda com meus irmãos. Lá fui abusado sexualmente por adolescentes maiores, chorei de angústia e saudade da minha mãe Judite e do meu pai Aníbal. Mas, ainda bem, que não faltaram boas presenças em minha vida. As freiras que ajudavam a administrar o lar das crianças estavam sempre lá nos dando pequenas alegrias. E a vida passava.


Quando a situação melhorou um pouco, meus pais adotivos me buscaram no orfanato. Eu já tinha oito anos e esse foi o dia mais feliz da minha vida. Desde então, eu reencontrei o amor de um lar.


Já mais adulto, com dezessete anos, resolvi entrar para o seminário e, antes, queria conhecer meus pais biológicos. Minha mãe Judite nunca escondera de mim que eu era seu filho do coração, mas que eu não nascera de sua barriga, como ela mesma costumava dizer. Pedi minha mãe que me levasse até minha mãe biológica e me ajudasse a descobrir quem era meu outro pai. Foi assim que, um dia, mãe Judite e eu subimos o morro para visitar uma estranha senhora que havia me gerado. Ela se tornara pastora de uma igreja pentecostal, depois de ter abandonado a prostituição. O encontro foi constrangedor: um bom-dia sem jeito, um abraço sem afeto, uma benção sem sentido... Éramos dois estranhos! Nenhum sinal de amor, nenhuma palavra de desculpas, nenhuma explicação... Nada! Quando perguntei por meu pai, disse apenas um nome que guardei na memória. Quando disse a ela que ia ser padre, a distância já existente se tornou um abismo sem pontes que pudessem transpô-lo. Minha mãe biológica me olhou com desprezo e não disse sequer “boa sorte!”.


Voltamos pra casa: eu aniquilado com a indiferença de minha progenitora; mãe Judite me consolando e dizendo que me amava. Nunca vou esquecer seu braço quente sobre minhas costas me afagando enquanto descíamos o morro da Periquita. Suas palavras de afeto ressoavam em meus ouvidos e curavam minha história pregressa. Dormi exausto, em prantos nos braços daquela que me amava.


Passado o susto do primeiro encontro com a mãe biológica, era hora de procurar meu pai. Eu já estava no seminário, quando fui em missão para um povoadozinho junto da cidade. Sabia que meu pai biológico vivia por lá. Numa das visitas, eis que um senhor de meia idade me atendeu. Minhas pernas bambearam. Como eu podia parecer tanto com alguém, meu Deus! Ele ficou confuso e foi logo perguntando quem eu era. Não hesitei e disse: “Sou Juliano, seu filho”. Ele já sabia da minha existência, dissera depois. Foi um encontro emocionante. Nos abraçamos e choramos muito. Passada a emoção primeira, conversamos longamente. Ele pediu perdão, explicou seus motivos por não ter me procurado. Disse que, quando soube que eu era seu filho, pois todos comentavam a semelhança, teve medo de interferir na minha vida e de criar problemas com meus pais adotivos, então se afastou. Foi um belo encontro. Não tivemos medo de dizer que nos amávamos, apesar da distância. Naquele dia, dormi sorrindo, desejando meus pais biológicos junto de mim para partilhar minha alegria com eles.  


Quando voltei para casa, era hora de arrumar as malas para ir para o seminário. Eu havia refeito meu caminho, reconstituído minha história: estava pronto para entregar tudo a Deus no serviço da Igreja. Meu coração estava livre. Perdoei minha mãe; refiz laços com meu pai. Era hora de seguir em frente. Não se passaram quatro meses, meu pai biológico enfartou e morreu. Quem o socorreu disse que ele pronunciou meu nome antes de morrer. Eu estava a mais de mil quilômetros de distância e só soube depois do enterro. Fiquei em paz.


Não fiquei no seminário, nem me tornei padre, mas foi um tempo de muita aprendizagem e cura do coração. Fiquei lá quatro anos, depois segui minha vida, estudando, namorando e me casei. Ainda hoje visito minha mãe biológica; continua estranho o encontro, mas com o tempo vamos nos aproximando. Minha mãe adotiva às vezes me acompanha nas visitas; outras, minha esposa e meus dois filhos também vão lá comigo. Alguns não entendem porque eu insisto em procurá-la. Mas aprendi com minha mãe Judite: “esse sou eu; essa é minha história!”. Pra fazer diferente, hoje, não tenho medo de dizer a meus filhos, minha esposa, meus pais e meus irmãos o quanto os amo. E vivo com intensidade e gratidão a Deus cada momento de amor e ternura que eles me oferecem.







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