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23. Amor doado (Mt10,34-42)

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21.05.2015 | 10 minutos de leitura
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Curso Bíblico
23. Amor doado (Mt10,34-42)

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34 “Não penseis que vim trazer paz à terra! Não vim trazer paz, mas sim, a espada.
35 De fato, eu vim pôr oposição entre o filho e seu pai, a filha e sua mãe, a nora e sua sogra;
36 e os inimigos serão os próprios familiares.
37 Quem ama pai ou mãe mais do que a mim, não é digno de mim. E quem ama filho ou filha mais do que a mim não é digno de mim.
38 E quem não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim.
39 Quem buscar sua vida a perderá, e quem perder sua vida por causa de mim a encontrará.
40 “Quem vos recebe, a mim recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou.
41 Quem receber um profeta por ele ser profeta, terá uma recompensa de profeta. Quem receber um justo por ele ser justo, terá uma recompensa de justo.
42 E quem der, ainda que seja apenas um copo de água fresca, a um desses pequenos, por ser meu discípulo, em verdade vos digo: não ficará sem receber sua recompensa”.
 Situando...

Jesus encerra o sermão missionário, as instruções dadas aos apóstolos para cumprimento de sua missão. Com o término desse discurso, Mateus termina mais um “livrinho”, o segundo dos cinco que formam seu Evangelho, tal como cinco são os “Livros de Moisés”, a Torah judaica, nosso Pentateuco. Assim como os antigos receberam pela Escritura o testemunho da Aliança feita com Deus, assim também a Igreja, novo povo de Deus, recebe das palavras de Deus a confirmação de sua nova filiação, de novo povo da Aliança, firmada pela Páscoa de Jesus e à qual todo ser humano pode se filiar pela fé.


Doação no amor


Nos versículos anteriores, Jesus asseverava aos discípulos que o anúncio do evangelho pode ser uma tarefa arriscada, marcada por incompreensões e perseguições. Mas, ao mesmo tempo, garantia que o Evangelho anunciado, fonte de força e paz para quem o recebe, é também sustento e esperança para quem o anuncia. E que, mesmo sofrendo penúria, o evangelizador está nas mãos de Deus. Isso não impede que se passe por dificuldades, mas torna a dor menos penosa, porque vivida em companhia do Espírito, sob os cuidados do Pai.


Mas por que a palavra de Jesus pode causar tanta divisão e acender tanto ódio? Seu evangelho não seria muito mais de aconchego e consolo, de doçura e ternura, de amor e reconciliação? Certamente... Mas é também uma palavra de verdade que desmascara a mentira, uma exortação à integridade que desafia os corações dúbios, um apelo que, como aguda lâmina de navalha, põe o ouvinte diante de uma decisão. Perante o evangelho, não é possível meia-resposta. Ou se adere a ele com o coração inteiro ou se o rejeita veementemente. É por isso que Jesus segue dizendo que “não veio trazer a paz, mas a espada” (v. 34). A paz aqui tem significado diferente da paz do v. 13. Naquela passagem, a paz era a completude do bem, fruto da aceitação do evangelho e da fé em Jesus. A palavra plantada no coração floresce em paz e frutifica em amor. Neste versículo, a “paz” que Jesus não veio trazer é aquele falso aquietamento, que esconde grandes conflitos e grandes contradições; muito mais inércia e apatia do que apaziguamento; uma paz forçada, garantida pela ameaça ou pelo desinteresse. E é claro que nada disso tem a ver com o evangelho a ser anunciado pelos apóstolos. Sua palavra será como uma espada, a mesma da Carta aos Hebreus: “Pois a palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções do coração” (Hb 4,12).


O resultado desse anúncio tão decisivo, que põe o ouvinte diante de uma opção tão profunda, a comunidade de Mateus conhece bem. Afinal, quantos membros dessa comunidade não foram expulsos da sinagoga por confessarem que Jesus era o Messias prometido nas Escrituras? E quantos não provaram a rejeição dos próprios familiares? Certamente, muitos pais foram denunciados pelos próprios filhos ou filhos entregues pelos próprios pais às autoridades da sinagoga e do Império... Por causa do evangelho, muitos perderam nome, casa, respeito... e agora se reconhecem nas palavras de Jesus e se sentem amparados por ela: “eu vim por oposição entre o filho e seu pai, a filha e sua mãe, a nora e sua sogra; e os inimigos serão os próprios familiares” (vv. 35-36).


Somente assim se pode compreender o versículo seguinte, em que Jesus parece condenar o amor demasiado ao pai e à mãe, irmãos e irmãs (v. 37). Ao longo da história, isso serviu para justificar decisões radicalizadas de “fuga do mundo” ou abandono das famílias por parte daqueles que iam se dedicar à vida religiosa consagrada ou ao ministério ordenado. Não foram poucos os que acreditaram (e ainda acreditam) que abandonar aqueles que os amavam era um sacrifício louvável e retribuído com largueza por Deus. Hoje compreendemos: não é esse o sentido da consagração religiosa, muito menos do serviço ministerial. Nos dois casos, a consagração a Deus tem muito menos a ver com restrições do amor e muito mais com um transbordamento do coração. Amar com mais e mais largueza, não um amor geral e despersonalizado, mas no rosto e na vida de todos os que se põem concretamente ao lado – nisso consiste a castidade consagrada. O versículo de Mt, por outro lado, se situa no contexto das perseguições e da opção determinante que nasce do evangelho: por mais que se ame pai e mãe, família e comunidade, nada disso deve impedir de optar radicalmente pela fé em Jesus. Certamente, essa nos fé levará a amar ainda mais os que estão à nossa volta, mesmo que não nos compreendam ou mesmo nos questionem pelas decisões que essa mesma fé nos impõe. A fé não impede de amar, tampouco o amor deve impedir de crer. Ao modo bem judaico, o que Mateus diz é que o amor dos mais próximos não deve se interpor entre o evangelizador e aquele que acolhe a palavra do evangelho.


Amor na doação


Nos caminhos do anúncio, evangelizadores e evangelizados se veem diante da mesma advertência: “tomar a cruz e seguir Jesus” (v. 38). O texto, evidentemente, foi escrito após a morte de Jesus, pois do contrário jamais mencionaria a cruz. Cruz, aqui, não simplesmente como sofrimento a ser tolerado, mas como entrega da própria vida. Pois o fim último do evangelho é fazer da vida de quem crê uma oferta de amor, a cada gesto de amor, em cada dia da vida, até a entrega definitiva e confiante ao Pai, na morte. Aqui mora um segredo escatológico muito precioso: quem busca preservar demais a própria vida, perde-a; enquanto quem a perde, preserva-a. (v. 39). Algo que bem poderia se chamar “espiritualidade da semente”, tão presente nos Evangelhos. Alguém que se encantasse com a beleza da semente, a ponto de cercá-la de carinho e limpeza, guardando-a numa caixa de cristal, no mais fundo de uma gaveta, teria para sempre preservada sua semente. Mas impediria que ela cumprisse sua mais urgente missão: brotar. Pelo contrário, o verdadeiro amor pela semente é aquele capaz de renunciar a ela, entregando-a à sua vocação, lançando-a no fundo escuro da terra, aparentemente abandonada ao relento. Na verdade, nesse aparente abandono e nas intempéries da vida (sol, chuva, ventos), ela encontrará forças para acordar o gérmen que dorme em seu interior e dele deixar florescer e frutificar sua vida multiplicada. Do mesmo modo, a vida humana pode se perder de tanto se preservar; ou se multiplicar enquanto parece se perder. Pois há os que, por excesso de prudência e comedimento, nunca se ferem, nunca se machucam, nunca choram, nunca se decepcionam; mas também nunca se lançam, nunca ousam, nunca se dedicam com afinco, nunca levam a fidelidade às últimas consequências, nunca morrem de amor. Esse preserva sua vida – apenas superficialmente, pois já se entregaram à morte da monotonia e da autopreservação. Pelo contrário, há os que se entregam com coragem e dedicação, se machucam nos erros em busca de acertar, se esfolam nas estreitezas da existência e nos espinhos dos corações, na tentativa de alargar sempre mais os horizontes de sua própria capacidade de amar. Sem dúvida, aos olhos dos covardes, esses estarão perdendo sua vida e gastando-se inutilmente. Mas os corajosos bem sabem a experiência pascal que semeiam, pois seu sorriso se multiplica e eterniza em tantos quantos aprendem a sorrir por sua causa, mesmo entre sofrimentos. Talvez este seja mesmo o segredo da páscoa de Jesus: a vida pode sim brotar da morte, quando a morte é cotidianamente vivida como entrega generosa de si mesmo, como dom a ser dividido com prodigalidade.


Por fim, uma palavra de consolo aos enviados, que fazem de si mesmos sementes de boa notícia: quem os recebe, recebe a Jesus mesmo, vivo no evangelho; e quem recebe a Jesus, já participa do convívio do Pai, que no Filho visita o mundo e o salva (v. 40). E a comunhão que se instala entre o missionário e aquele que o acolhe por causa do evangelho é perfeita: um profeta semeia profecia por onde passa e na memória daqueles que o acolheram, sua palavra permanece viva; um justo espalha justiça com sua vida e seu testemunho, fazendo justos aqueles que o recebem e compreendem sua palavra (v. 41). Vale lembrar que Mt entende por “justiça” não o cumprimento estrito dos mandamentos da Lei (como em Dt 6,25), mas o “ajustamento” do coração e da vida à vontade de Deus, indo além da Lei sempre que for preciso. E essa reverência com a palavra e seus anunciadores vai às últimas consequências: até um copo d’água dado por causa do evangelho é notado por Deus (v. 42), para dizer: toda ação motivada pelas palavras de Jesus tem valor, por menor que seja. E geram recompensa? O apóstolo bem sabe que gera apenas uma: a recompensa da palavra anunciada é o próprio anúncio e o bem nascido da palavra; assim como a recompensa pelo bem praticado é apenas a bondade do gesto mesmo e o refrigério nascido da bondade partilhada.


* * *


Que sejamos generosos missionários da palavra de Jesus. Mas, sobretudo, que a palavra semeada nos convide a doarmos a própria vida pelo testemunho, como sementes vivas de boas notícias, grávidas de belas flores e bons frutos.







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