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212. Na carne viva: Entre o humor e a política

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30.01.2020 | 14 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Crônicas
212. Na carne viva: Entre o humor e a política

“Apareceu um sinal no céu:

um grande dragão cor de fogo,

com sete cabeças e dez chifres” (Ap 12,3)



 “— A aventura vai encaminhando os nossos negócios
melhor do que o soubemos desejar;
porque, vês ali, amigo Sancho Pança,
onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes,
com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas,
e com cujos despojos começaremos a enriquecer;
que esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus
quem  tira tão má raça da face da terra.

— Quais gigantes? — disse Sancho Pança.

— Aqueles que ali vês — respondeu o amo — de braços tão compridos,
que alguns os têm de quase duas léguas.

— Olhe bem Vossa Mercê — disse o escudeiro —
que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento;
e os que parecem braços não são senão as velas,
que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.

— Bem se vê — respondeu D. Quixote —
que não andas corrente nisto das aventuras;
são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí,
e põe-te em oração enquanto eu vou entrar
com eles em fera e desigual batalha”

(Miguel de Cervantes. Dom Quixote de La Mancha, capítulo VII)


 

O brasileiro aprendeu a brincar com situações muito sérias e constrangedoras, haja vista a quantidade de charges, tirinhas e “memes” na internet esboçando as mais variadas reações diante de situações inusitadas, frustrantes ou descabidas. O humor aparece como reação, mas também como protesto, como crítica, como ferramenta para fazer ver o absurdo de certos acontecimentos. Entretanto, a ridicularização de alguns eventos pode fazer esquecer a seriedade dos mesmos ou pode colaborar para a nossa desresponsabilização, fazendo abandonar o necessário engajamento e a atitude corajosa que a vida nos exige. Assim, o humor, que é uma ferramenta importante para desnudar absurdos, pode acabar por velá-los e fazê-los parecer normais, o mais do mesmo, o excesso do repetível.


Isso faz perguntar, de chofre, se o humor deve estar entre uma dessas extremidades: ser uma ferramenta de engajamento e crítica ou ser uma espécie de esquiva, uma válvula de escape, fonte de entretenimento para alívio e descarga emocional diante do desamparo. Acontece que o humor pode perfazer os dois polos dessa tensão, sem maiores problemas. Pode ser uma ferramenta política ou pode simplesmente ser a liberação das tensões. Pode ser, inclusive, um dos polos, dentro do outro, contemporaneamente. Alguém poderá objetar que uma extremidade exclui a outra, mas na realidade, teses e antíteses são muito mais interiores do que se possa supor.


Todavia, talvez tenha razão a letra da canção que diz: “rir de tudo é desespero”. Há situações que não são para rir, não são de natureza risível, e rir delas não passará de um efeito reverso do real sentimento que tais circunstâncias produzem. O assunto aqui é delicado, porque não inclui, de maneira alguma, falar de censura ou falar de um filtro para o humor. Façam graça com o que quiser! Muitas realidades podem mesmo ser vistas como risíveis.  Acontece, porém, que o engraçado nem sempre se oferece sem ser acompanhado de uma enorme interrupção da sensibilidade. Para rir de certas coisas, portanto, a sensibilidade precisa sair de cena. 


O brasileiro, o mesmo que faz piada de tudo, não se cansa de produzir memes sobre sua realidade política e econômica. Diz-se por aí que o brasileiro não se interessa por política, que toda essa movimentação política atual é muito recente, muito superficial e idiotizada pelas redes sociais, de tal modo que só pode ser polarizada ao extremo, como percebemos nesses últimos anos. A realidade, porém, mostra que nunca antes a política esteve tão presente em nossas conversas: no bar, nas salas de aula, nas igrejas, nas rodas de amigos... Essas conversas podem ser a reverberação de uma idiotização midiática, mas quase sempre vêm acompanhadas de alguma opinião, de alguma reflexão sobre o tema.


Como a discursividade política é polarizada em nosso país, há quem esteja bastante satisfeito com a política desenvolvida pelo atual presidente: aquele-que-não-deve-ser-mencionado, cujo codinome é a besta do Apocalipse. As principais justificativas para esse contentamento são a economia e a segurança e, esses dois setores são coordenados por dois grandes braços do presidente: os ministros Paulo Guedes e Sérgio Moro. Os descalabros dos outros ministros não importam, contanto que esses dois braços funcionem. Não “impreciona” um ministro da educação que não saiba escrever ou fazer cálculos de porcentagem; não escandaliza o emparelhamento do Estado para eliminação de inimigos políticos; não incomodam as suspeitas de corrupção na família do presidente nem as suspeitas de um governo que se alia às milícias. Importa, tão somente, que a economia flua e a segurança seja garantida.


Pois bem. Analisemos brevemente esses dois setores. A economia em 2019 gozava da prospectiva de um grande avanço, que não se cumpriu. O crescimento do PIB ficou abaixo dos dois últimos anos do governo Temer; não houve, portanto, retomada, mas desaceleração econômica. Os que defendem o avanço, sugerem que os efeitos de um melhoramento econômico não serão vistos tão rapidamente e que, com o tempo, poderemos verificar os resultados das ações bem afamadas do ministro Paulo Guedes. Certamente como se vê hoje no Chile, onde esse ministro implantou seu sistema de previdência. Em que consistem essas ações? Nas reformas impopulares, mas necessárias, como a reforma da Previdência. Muito interessante é, contudo, que essa reforma não se aplica aos militares e suas famílias, nem aos grandes e poderosos políticos já aposentados, mas aos pobres, exclusivamente. A reforma da Previdência pode ser necessária, mas é injusta, porque não é para todos. Além, disso, está desacompanhada das mais que necessárias reforma tributária e reforma política, das quais não se fala. Ou seja; qualquer reforma que promova mudanças apenas para uma classe, excluindo uns privilegiados que têm a superproteção do sistema, acaba mostrando a sua hipocrisia e escancarando seus interesses espúrios. É escalpelamento de pobres.


A política liberalista do ministro Paulo Guedes quer agora aumentar os tributos. Ele diz avaliar, atualmente, a possibilidade de um imposto sobre o cigarro, o álcool e produtos com açúcar, o que está ficando conhecido como imposto do pecado. A justificativa lógica é: se o Estado terá que cuidar da saúde desses usuários, que não se comprometem com a mesma, é justo que desde já eles tenham que pagar por isso. É interessante como nesse governo se combatem mais os efeitos do que as causas. As políticas de abstinências são defendidas e elas já se mostraram ineficazes. Enquanto isso, as políticas de redução de danos, reeducação, o incentivo pela informação em diversos setores, é combatido e mesmo desarticulado. O lema do governo pode ser trocado, sem males: Reformas acima de tudo; Paulo Guedes acima de todos.


Sabe-se que o dragão do Apocalipse está acompanhado de uma dezena de bestas-cabeças. É ministro fazendo discurso semelhante ao garoto propaganda do nazismo; é ministra defendendo a castidade como principal método contraceptivo; é gente falando tanta asneira que até onde só há moinhos de vento, a gente aprendeu a ver gigantes. Corremos o grave risco de enlouquecer. E o dragão cor de sangue não quer outra coisa: esses dias sugeriu que os índios estão evoluindo e se tornando tão humanos quanto nós. É de rir, para não chorar. Não. Não é de rir, para falar a verdade. Os índios não merecem chegar ao grau de in-volução dessa geração capitalista e louca.


Com o ministro Sérgio Moro, a segurança também não foi longe. O juizeco é mais popular do que realmente capaz. Se o chefe de Estado é o dragão de dez cabeças e dez chifres, o ministro da justiça é sua própria cauda, sacudindo, querendo varrer a quarta parte das estrelas. Alguém me explica como ele se tornou herói nacional? Uma possível suspeita de que a popularidade de Moro está crescendo pôs uma “pulga atrás da orelha” do chefe da nação. Será que ele pode vir a ser o novo presidente do país? A gente já sabe que ele faz o que for preciso para “subir na vida”; um aproveitador, o palermão.


Os números, contudo, mostram que a segurança está no caminho certo. Mas será? As notícias apontam para a redução de indicadores se compararmos 2019 com 2018, mas a avaliação dos sociólogos é a de que é preciso observar a ação dos Estados. Em verdade, as cadeias continuam superlotadas sem um sistema penitenciário que realmente funcione. A segurança pública gerencia o medo e exerce o terror nas comunidades. A ação desabridada polícia é uma ingerência que promove caos, não segurança. A política antidrogas segue ineficaz, porque jamais levada a sério. Crescem as clínicas de reabilitação coordenadas por grandes empresas protestantes. A bancada da bíblia deita e rola feliz; a da bala goza dias de glória. A maquiagem política sobre a segurança pública não faz ver senão uma intensa política de números e não um verdadeiro progresso na área da segurança. Sérgio Moro continua sendo mais publicitário do que bom ministro.


Logo, o governo não está numa boa fase. Seria ingenuidade e hipocrisia admitir o contrário. O regime do governo atual é o regime da crise, de falas ditas e desditas, da troca contínua de ministros, de gente absurdamente ignorante para gerenciar pastas que ele cria, descria, recria... Além disso, seu regime é o regime do Twitter e do Facebook, da palavra pouco honesta, das cortinas de fumaça, do investimento de altas quantias para fazer passar aquilo que acredita ser prioridade, enquanto gastos com saúde e educação continuam congelados. Se esse é um bom governo, faz dó conhecer qual seja o ruim.


Do outro lado está a esquerda. Está? Na realidade não está. A esquerda política no nosso país encontra-se pulverizada. Com ações que consistem, até agora, em deixar o desmando do governo vigente progredir e com uma oposição que compreende apenas algumas queixas isoladas, alguns protestos, mas nada com verdadeira força política de oposição. A recente liberação do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva foi a promessa de uma rearticulação da esquerda ao redor desse grande carismático, mas ela ainda não se deu concretamente no palco político. Ela segue silenciosa. E, se tem uma coisa que a política do hellboy não é, é silenciosa. 


O presidente Devil tem uma equipe de publicidade e propaganda genial. Seu nome é quase oniabrangente. Amado ou não, seu nome é repetido no palco mundial, nacional e, através da micropolítica, chega aos celulares e à mesa de bar no interior do interior dos Estados. Sua política do caos tem efeitos poderosíssimos: gerar medo, criar terror, desanimar esperanças, desestimular lutas históricas. E, quando não gera caos, faz crer que o está promovendo, conquistando com isso o ódio. O presidente não quer ser amado, quer mesmo é ser odiado, quer seu nome nos trendtopics, quer sua política maldita, mal afamada, conquistando holofotes, custe o que custar. Devemos lhe dar tanta atenção e chamá-lo pelo nome? Tornarmo-nos indiferentes aos seus descalabros seria o mesmo que pedir a morte, pois em tempos de confusão e pós-verdade, só nos resta apalavra. Mas é urgente também começar a enganar o algoritmo, derrubar o nome que se pretende todo-poderoso, dando-lhe o desprezo de não o repetir. Se alguns nomes veneráveis merecem uma reverência ao serem pronunciados, ao nos referirmos ao chefe dessa nação de nome Brasil, talvez devêssemos dar uma cuspidela no chão.


Estamos na carne viva, por conta de todo esse cenário.A dessensibilização que a exposição constante à violência, através da palavra ou de ações, promove é grave. E, além disso, um de seus efeitos é um constante sentimento de tristeza, de derrota. Assoma-se a isso o empobrecimento que vem a galope, as ameaças no ambiente de trabalho – ameaças invisíveis por parte de patrões que se tornaram superpoderosos –, o descontentamento com situações profissionais que se parecem com uma escravidão naturalizada, os preços cada vez mais altos, os salários cada vez mais baixos. Quem mais sofre nesses país não são as classes mais privilegiadas, são os pobres. Os mais privilegiados não protestam; apenas consentem.


O que fazer diante da política do terror e do caos, que governa para uma pequena parcela?


É preciso reorganizar a esquerda. Esquerda faz bem para qualquer política. Não se trata de não deixar o governo que saiu eleito governar, ou de torcer contra. Trata-se de fazer oposição consistente. A oposição serve para a autocrítica do governo que está à frente de um país. Mas serve também para fazer recuar certas políticas que são aristocráticas, exclusivistas e sem pé nem cabeça. Uma oposição que defenda, inclusive, uma reforma política que comece por ela mesma.


Além disso, há inúmeras maneiras de combater a política do medo e do caos que procede do quinto dos infernos. É preciso deixar de pronunciar seu nome com tanto fervor e de dar-lhe a midiatização que ele, narcisicamente, pede. É preciso operar nesse tempo de terror com a poesia, com a beleza, com a música, com as artes, custe o que custar. E, sobretudo, é preciso bom humor.


De novo o humor. Não se diz bom humor, aqui, para sugerir que há um mau humor. Por certo, há um senso de humor que não agrada a todos, que fere sensibilidades; é preciso desenvolver aquele axioma clássico e paradigmático que ensina que é possível tolerar tudo, menos a intolerância. Contra ela é preciso debater, discutir, criar rodas de conversa, ampliar os espaços de palavra. Nada de censura ou intolerância contra a intolerância. Mas humor é imprescindível. Não é a receita velha do “rir é o melhor remédio”. Pelo contrário: é buscar o humor como ferramenta de crítica e, por que não, de escoamento das angústias. É usar o humor para derreter estruturas, para construir novas ideias. Contra a política do medo, podemos contrapor a política do humor, que sempre exige doses e doses de criatividade.


Com intolerância, não devemos recair na mesma lógica. Aliás, esse é sempre um risco: de nos tornarmos semelhantes ou mesmo iguais àquilo que combatemos. Podemos endurecer com a luta, podemos ganhar as mesmas feições atrozes na luta pela justiça. O que a besta quer – certamente –é que a gente se torne igual a ela. E na luta contra o cão, é preciso cuidar para gente não pegar raiva. A intolerância não se tolera, mas não se combate com a mesma intolerância. Antes, podemos discutir, protestar, combatê-las abertamente, desarticulá-la em suas raízes.


A política do caos do presidente tem nos feito ver gigantes, onde há só moinhos, isso é fato. Na carne viva, sem combater esse necropoder, podemos enlouquecer, isso já o sabemos. Antes, portanto, será melhor, às avessas do que fez Dom Quixote, investir nossas forças e criatividade, não contra moinhos, mas contra o desvario da politização do medo e do terror. Avante, pois, cavaleiros! Não há nada a temer. Está passando da hora de mostrar a essa besta e a todos os seus comparsas que nós não fomos vencidos. Nosso riso, nossos sonhos, a beleza e o amor são capazes de desinfernizar o mundo. E se não agrada ao leitor essas imagens maniqueístas de briga do bem contra o mal, talvez valesse acrescentar: não fui eu quem comecei a briga.