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170. Contra o fluxo

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13.02.2018 | 5 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
170. Contra o fluxo

Não vos conformeis com este mundo,

mas transformai-vos renovando vossa maneira de pensar e julgar.” (Rm 12,2)



Ê, ô, ô, vida de gado!

Povo marcado, ê,

Povo feliz!”

(Zé Ramalho)


 

“Segue o fluxo”, nos diz o bom senso, quando a gente desconhece o território. Essa é, sem dúvida, a melhor opção para o motorista que está perdido. Mas será essa máxima também válida para a vida?


Quando jovem, certa vez, numa viagem, precisei apear (assim dizem os mineiros) em São Paulo e tomar outro ônibus. Eu era mocinha do interior e acho nunca tinha saído de casa. Estava acompanhada por mais seis jovens, bem mais espertinhos e viajados do que eu. Um mundo desconhecido se descortinou para mim. Gente, como ondas, escorria pelos corredores da rodoviária, levando-me para onde eu não queria ir. Um segundo de descuido e eu era tragada pelo fluxo, dando trabalho para meus amigos que precisavam me resgatar da multidão ambulante.


Mais recentemente também vivi experiência parecida. Aventurei-me a fazer sozinha uma trilha maravilhosa num parque estadual, que está esquecido num canto do Estado do Espírito Santo (Parque Estadual do Forno Grande). É bem verdade que já sou trilheira experimentada, mas trilhar sozinha é novidade para mim. Sempre estou acompanhada de amigos ou de um guia local. Mas desta vez foi “na cara e na coragem”.


Quando peguei um pedacinho da BR 262, conforme orientação do dono da pousada, notei que nenhum carro ia na mesma direção. Praticamente todos iam em sentido contrário. Fiquei receosa e cheguei a pensar que não havia feito boa escolha, que o parque estaria às traças e sem condições para uma boa trilhada. Eu estava contrariando a regra “segue o fluxo”.


Chegando ao local, o parque me surpreendeu. Deixe-me explicar. Os parques nacionais e estaduais, fora raras exceções, estão um lixo: estrutura nenhuma, pessoal mínimo, cuidado zero. Normalmente, áreas nobres estão queimadas e há marcas de sujeiras por todo lado, como garrafas de plástico e latinhas. Mas, dessa vez, foi diferente: o centro de visitantes é belo, a entrada é gratuita, o cuidado estava presente em cada detalhe.


Os guarda-parques estranharam que eu estivesse desacompanhada, mas garantiram que a trilha era autoguiável e segura. Valeu a pena arriscar! A trilha é belíssima, com imagens encantadoras, piscinas naturais boas para banho, vegetação exuberante e uma discreta orquestra de pássaros e insetos. Valeu a pena contrariar o fluxo. Mas foi por pouco. Eu quase perdia essa maravilha, pois pensei em desistir quando vi que ninguém ia na mesma direção.


A impressão de nadar contra a maré, de ir contra o fluxo, não é estranha aos cristãos. Abraçar o evangelho é andar na contramão das conveniências sociais, é posicionar-se fora do comodismo social, é dizer não à institucionalização da fé, é ir contra o fluxo da moda conservadora que se alastra pelos ambientes religiosos. Ainda bem que, nessa jornada, não nos faltam palavras de incentivo. O apóstolo Paulo insiste: “não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos” (Rm 12,2). Também Jesus alertou: “esforçai-vos por entrar pela porta estreita” (Lc 13,24). E não é só uma questão de palavras encorajadoras. Os Evangelhos estão plenos de relatos que mostram Jesus indo contra a correnteza religiosa e social de seu tempo. Também o livro dos Atos dos Apóstolos e os outros escritos neotestamentários insistem que é preciso reagir contra a onda natural do comodismo humano e sair da tal zona de conforto se, de fato, queremos ser discípulos de Jesus. A fé que abraçamos não é um conjunto de piedades e devoções, mas um estilo de vida. Trata-se de um modo de viver, de pensar, sentir e agir. Como diz a canção de padre Zezinho, o evangelho nos obriga a “amar como Jesus amou, pensar como Jesus pensou, viver como Jesus viveu”...


Caminhar a favor do fluxo é mais cômodo; é só a gente se deixar levar pelas vagas que se formam. Ficar firme nadando contra a correnteza, isso sim é coisa para fortes. “Se todo mundo faz, eu também faço”, pensamos. “Todos se deixam corromper, por que não eu?”, nos perguntamos. Com essa cultura da corrupção que se firmou na sociedade brasileira, fica difícil não seguir a onda. Parece impossível a gente se preservar da idolatria do dinheiro e saber partilhar. Solidariedade tornou-se um luxo e fraternidade é coisa rara. Honestidade parece ter entrado em extinção e gentileza tornou-se coisa rara. Indiferença é a regra; corromper-se é o imperativo categórico. Sem perceber, seguimos arrastados pela onda da conveniência e da facilidade. Subjugados pelas estruturas de pecado, vamos reafirmando a cultura de morte. Estamos sujeitos a esquemas de exclusão e maldade, ainda que não queiramos, afinal organizações de corrupção se afirmaram socialmente e o pecado nos precede. Na verdade, não sabemos mais o que fazer. Sentimo-nos impotentes, como gado marcado para a morte. Dá vontade de desistir, de esquecer o evangelho, até a hora em que a gente encontra alguém que nos mostra que não estamos tão sozinhos assim.


Ah, para minha surpresa, na minha aventura de trilheira solitária, percebi alguns quilômetros depois que, logo depois de mim, havia um casal fazendo o mesmo trajeto. Foi confortador saber que eu não estava sozinha. Batemos fotos, “trocamos figurinhas”, admiramos juntos a beleza da vida. É assim na fé cristã: sempre há alguém que persiste nos valores do evangelho, fazendo-nos acreditar que ir contra o fluxo do egoísmo e da indiferença vale a pena.